Cada vez mais preguiçoso para fazer resenhas comme il faut, prefiro remeter vocês ao exatíssimo texto de Ely Azeredo sobre Heleno em O Globo. Ele diz tudo o que me interessaria dizer.
Mas quero usar esse espaço para destacar um aspecto abordado rapidamente pelo Ely: o filmaço de José Henrique Fonseca “não se propõe a documentar a vida e a obra de Heleno de Freitas”. De fato, para quem anda chateado com a recorrente utilização de recursos documentais nos filmes de ficção brasileiros, notadamente os de caráter biográfico, Heleno é uma exceção refrescante. Não há traços de testemunho, arquivos ou improvisação naturalística (a não ser na cena da conversa com os internos do sanatório). As fotos do Heleno real nos créditos finais são apenas um lugar-comum bem vindo nesse tipo de filme.
Há uma falsa insinuação de “documento”, logo no início, quando a câmera percorre uma parede coberta de jornais com manchetes das artimanhas do ídolo botafoguense. Mas não demora muito para vermos que essa “cenografia” tem, na verdade, um valor dramático. A atitude de Heleno/Rodrigo Santoro simboliza, de certa forma, como o filme engole as referências documentais para dentro de seu organismo ficcional e as transforma num ensaio poético.
O Rio de Janeiro que está no filme é um Rio estilizado, quase uma projeção da megalomania e do hedonismo do personagem. Nesse sentido, lembra a Little Italy de Jake La Motta no Touro Indomável de Scorsese. Intuo no filme uma vasta e bem assimilada influência de Raging Bull, seja na composição do personagem fascinante e auto-destrutivo, seja na estética primorosa que une a fotografia preto e branco de Walter Carvalho à montagem cortante de Sergio Mekler; o uso dos corpos, dos closes, do slow motion, das brumas expressionistas.
Numa sessão verspertina ontem (sexta) no Espaço Itaú de Cinema, o público aplaudiu ao final. Ouvi, porém, alguém reclamar que o filme não exprime o lado glorioso do craque. Tem toda razão. Estamos a milênios do filme para torcedor ou para a posteridade deste ou daquele clube. Com sua estranha atmosfera fronteiriça entre a euforia e a depressão, a beleza e a abjeção, a vida e a morte, enfim, Heleno é, isso sim, um filme sobre um fantasma ainda vivo, patético e desesperado. O futebol é somente a circunstância.
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Carlinhos: Assisiti o filme na seção para a crítica onde o Ely Azeredo também estava. Na saída, me perguntou o que achei. Eu disse: “Achei meio ‘eu queria ser Touro Indomável’ “. Ele me disse que não havia pensado nisso. Fica claro no ótimo texto dele (como texto, como opinião, discordo) que viu outros caminhos para comentar o filme. Vc também lembrou do Raging Bull. Acho que é uma associação que muitos podem fazer. Só que me pareceu que vc achou que chegou perto. Achei que ficou muito longe. A sífilis é quase personagem central, parece que tudo da personalidade pré-mórbida do jogador já seria um pouco (ou muito) de sífilis. Da fotografia em P&B, recriações imagéticas, aos desempenhos, há mais qualidades cinematográficas do que no roteiro que não me pareceu conseguir tornar tão interessante aquela vida (real ou ficcionalizada) tal como Scorsese conseguiu fazer com a vida de Jake La Motta. Mas, enfim, antes que eu repita a frase do Rosa vou parar por aqui. Bom fim-de-semana.
Depois que escrevi esse texto, verifiquei que muitos já haviam feito a associação com o filme do Scorsese. É inevitável, claro. Mas acho que o filme foi muito feliz em minimizar os aspectos mais biográficos e trabalhar com uma certa mitologia do Heleno. A estrutura não linear faz com que o tema da sífilis contamine todo o resto, sem dúvida, mas isso também me pareceu uma solução eficaz. A doença meio que somatiza a arrogância e a megalomania do craque. Como um sintoma-metáfora. Mas não cabe comparar com o Touro a nível de chegar ou não chegar lá. É um caso apenas de influência bem assimilada, ao contrário de tantas outras tentativas de emular estilos estrangeiros que vemos por aí.