Celina Sodré está cometendo mais uma de suas amorosas infidelidades. Dessa vez, levou personagens de Guerra e Paz para o casarão do seu Studio Stanislavski, ali na Rua da Lapa 161 (sexta, sábado e domingo às 20h, só até o dis 29).
No recorte dramatúrgico de Henrique Gusmão, quase nada deve ser visto à luz do original de Leon Tolstoi. Nesse Fantasmas de Guerra e Paz não se fala em batalhas, creio que Napoleão nem é citado e toda a ação se concentra em uma noitada de bordel.
O espetáculo começa com os espectadores masculinos separados das femininas. As mulheres sobem diretamente ao segundo andar, onde penetram num lupanar com mulheres nuas e seminuas. Os homens são levados ao botequim do térreo, onde os atores, já caracterizados como no século XIX, se misturam aos clientes para jogar uma partida de sinuca.
Em seguida, atores e espectadores sobem ao primeiro andar para um belo salão à espera do encontro com as mulheres. Durante o primeiro ato, as plateias permanecem divididas, e é quando o velho sobrado diz a que veio teatralmente. Os homens bebem, conversam e discutem sobre a vida, a guerra, o sexo e a natureza humana. A todo momento, o ruído das mulheres no andar de cima interfere na ação e no mood dos homens embaixo. Elas cantam, gritam, sapateiam. Geram um som off de bom impacto dramático, que infelizmente só os homens são capazes de usufruir.
Aliás, as mulheres levam certa desvantagem na encenação, já que, em dado momento, os homens são levados ao segundo andar, enquanto a elas nunca é facultado o acesso ao primeiro. Minha mulher me contou que lá em cima elas choram, bebem, leem cartas de tarô para as espectadoras, vestem-se e desvestem-se. Celina incorpora o fato de que aquele sobrado foi um prostíbulo no passado. Quando chegam os homens, as atrizes os recebem como clientes já conhecidos, com os quais parecem já ter uma história. O jogo dos casais se dá em “quartos” separados e marcados no chão com os nomes das prostitutas, um pouco à Dogville. O público se senta entre eles, muito próximo de tudo, como se fosse possível à plateia dividir o mesmo espaço com os atores do filme de Lars Von Trier.
Mas o filme que de repente irrompe na cena é Guerra e Paz, de Sergei Bondarchuk. Uma cena crucial do romance entre Natasha e Andrei é projetada sobre as roupas brancas dos respectivos personagens. Não chega a ser um procedimento muito orgânico à peça, mas funciona como uma bela e rápida citação do trabalho de Celina com O Sacrifício de Tarkovski na peça O Sacrifício de Andrei – imagem aliás, da capa da última revista Filme Cultura.
A Lapa penetra a cena por todos os orifícios: os sons dos bares ao redor, as janelas que se abrem perto do final para vermos os atores saírem em performance pela Rua da Lapa, no meio dos carros e dos passantes. O próprio elenco é tingido pela cor local. Três travestis e uma transexual estão entre as prostitutas do segundo andar. O travestismo é referido também pela atriz Clara Choveaux, que aparece como um oficial andrógino no primeiro ato entre os homens e como uma prostituta no segundo.
O clímax não tem nada de erótico ou mundano, mas sim alude à iniciação do protagonista Pierre Bezukhov na maçonaria. É um momento solene e brilhante da peça.
Fantasmas de Guerra e Paz pode não ser a mais coesa e interessante tentativa de Celina Sodré de criar o seu chamado “segundo original”, mas é prova de um pensamento coerente no sentido de mesclar lugares e épocas em busca de uma expressão inesperada. É prova também de que a Lapa não é apenas seu endereço teatral, mas uma inspiração fecunda e poderosa.
Vi e adorei!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Parece ser imperdível!!!