Uns carinhas descendo ladeiras pelo mundo afora em cima de skates a 120km por hora, uma história de amizade internacional em meio à rivalidade esportiva e uma linguagem contemporânea, estimulante e afiada conquistaram os jurados do FIFE – I Festival Internacional de Filmes de Esporte. O documentário brasileiro Dalua Downhill, de Rodrigo Pesavento, Fernanda Krumel e Tiago de Castro, foi eleito o melhor longa-metragem da competição, que terminou ontem no Rio.
O filme revela as emoções de um esporte pouco conhecido, o skate downhill, em provas no Sul do Brasil e em lugares como Peru, EUA, Canadá e África do Sul. Mas suas qualidades vão além das técnicas utilizadas para filmagem das descidas, incluindo cenas eletrizantes captadas com câmeras no capacete dos atletas. Dalua Downhill é sobretudo a radiografia de uma “tribo” com seus exemplos de queda, persistência, paixão pelo esporte e laços de amizade que se confundem com a disputa pelo primeiro lugar. Enfim, um filme delicioso de se ver e ouvir, além de inspirador como celebração da essência do esporte.
Como melhor curta-metragem, foi escolhida a animação Lição de Natação (De Zwemles), do belga Danny de Vent, já exibida no Anima Mundi. Em concisos nove minutos, o filme explora a percepção de uma criança ao cair acidentalmente numa piscina cheia de adultos e descobrir sozinha o equilíbrio entre o pavor e o prazer na experiência da vida.
O prêmio do público foi para o documentário iraniano Salam Rugby, que enfoca as restrições sobre as mulheres que querem jogar rugby num país em que elas não podem se aproximar de homens nem mostrar a pele ou os cabelos. O tema do inferno feminino iraniano é bem conhecido do cinema, mas esse ângulo põe em evidência alguns novos fatores. O diretor Faramarz Beheshti, presença constante e simpática nos dias do festival, foi criado na Itália e vive hoje na Nova Zelândia. Seu filme e seu discurso são de franca oposição ao governo Ahmadinejad.
O festival, cautelosamente modesto em tamanho nessa primeira edição, caprichou na qualidade da seleção. O júri, formado por Barbara Destefanis, Monica Schmiedt, Sergio Weguelin Vieira, Victor Andrade de Melo e por mim, teve um trabalho difícil entre vários filmes de alta qualidade cinematográfica, e nos quais o esporte abria janelas para o funcionamento da sociedade em países e épocas distintas. Surpreendentemente, seis dos oito longas da mostra competitiva eram dirigidos ou codirigidos por mulheres. O júri deu uma menção especial para o longa La Yuma, de Florence Jaguey, sobre uma jovem da periferia de Manágua que treina luta de boxe e começa a namorar um jovem jornalista de outro contexto social. O filme, que já ganhou prêmios em Gramado, se impõe rapidamente pela qualidade da dramaturgia, a competência do elenco (com destaque para Alma Blanco no papel principal) e um retrato verossímil do ambiente em que se passa a ação.
Na seara do favela-movie destacaram-se também dois outros filmes realizados por mulheres: o indiano Marathon Boy e o sul-africano Otelo em Chamas (Otelo Burning). Marathon Boy, de Gemma Atwal, já é uma sensação do circuito internacional e ganhou como melhor documentário da Mostra de São Paulo. O roteiro parece saído da pena de um dramaturgo de primeira linha, girando em torno da relação entre um miúdo maratonista-mirim – acompanhado pelo filme entre os 4 e os 9 anos –, sua mãe biológica e seu pai adotivo e treinador. Através dessa história trágica, quase inacreditável, o filme traça um painel das contradições da Índia entre a espiritualidade e a busca do sucesso, a proteção e a exploração dos talentos iniciantes.
Já o ficcional Otelo em Chamas, de Sara Blecher, trata de jovens surfistas negros que ousam desafiar a segregação na época do fim do apartheid mas não conseguem escapar aos conflitos do próprio gueto. O filme busca inspiração direta e evidente em Cidade de Deus, com corpos negros cobertos de óleo, iluminação levemente hiperrealista e decupagens semelhantes, até mesmo nos giros da câmera em torno de um personagem para voltar ou avançar no tempo.
Um dos filmes mais originais da competição foi o francês Os Árbitros (Les Arbitres), de Yves Hinant, Delphine Lehericey e Eric Cardot. Desconheço outro documentário que tenha penetrado tão fundo no mundo à parte dos juízes de futebol, seus dilemas pós-jogo, sua convivência profissional e sua torcida familiar. Um dos trunfos do filme é captar a frequência da comunicação por fones de ouvido entre juízes e auxiliares no curso das partidas, o que divulga um ponto de vista emocional talvez inédito na cobertura do futebol.
Entre os curtas, dois brasileiros fizeram bonito. Pátria, de Fábio Meira, atualiza as emoções da “guerra” entre as equipes de vôlei feminino de Cuba e Brasil nas Olimpíadas de Atlanta de 1996. Fábio monta as cenas cruciais das partidas com o comentário atual das jogadoras, brasileiras e cubanas. Assim, ao mesmo tempo em que revivemos a contenda, refletimos sobre o conceito de “pátria” à luz de semelhanças e diferenças de contexto entre as cidadãs dos dois países. Um trabalho concentrado, econômico e muito mobilizador.
Embora mais dispersivo e fundado num modelo já um tanto gasto (o humor metalinguístico), De Olaria a Helsinque, de André Klotzel, recupera com certa eficácia a trajetória do atleta José Telles da Conceição, primeiro brasileiro a ganhar medalha olímpica no atletismo (salto em altura) em Jogos Olímpicos, no caso os de 1952.
Le Petit Dragon, animação do genial Bruno Collet sobre um boneco de plástico que “incorpora” Bruce Lee, e Long Distance, documentário um tanto lacônico de Moritz Siebert sobre um imigrante etíope que tenta a vida como corredor em Nova York, também chamaram a atenção na mostra competitiva.
Para a próxima edição, além de manter o ótimo nível da seleção, o FIFE precisa saltar sobre duas grandes barreiras: atrair mais público mediante um trabalho de divulgação eficiente e dirigido; e solucionar os problemas de legendagem eletrônica. De resto, é festejar e botar a bola pra frente.
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