Coisas Nossas

NOTAS SOBRE ALGUNS GÊNEROS TIPICAMENTE BRASILEIROS        

(Texto publicado originalmente na revista Filme Cultura nº 61, de nov/2013) 

É consenso entre críticos e estudiosos que os gêneros cinematográficos não são categorias rígidas. São antes classificações que se interpenetram e variam de acordo com épocas, lugares e contextos culturais. No fundo, são construções que partem seja da indústria como estratégia de ocupação de mercado, seja da crítica como forma de apreensão intelectual da produção industrial.

Os gêneros se dividem em subgêneros (o drama de tribunal, por exemplo), combinam-se em supragêneros (a comédia romântica) e se desdobram em ciclos, filões, vertentes. Essa dinâmica vai se pautar tanto pelos momentos históricos e políticos como pelas mutações tecnológicas e pelas vivências específicas de determinadas regiões. Este artigo se justifica por essa última variação.

A existência de gêneros nacionais é fartamente comprovada na história do cinema. Alguns exemplos incontornáveis são o western americano, os filmes de artes marciais de Hong Kong, as comédias conjugais italianas dos anos 1960 e 70, o “cinema de lágrimas” mexicano e argentino da década de 1940, os bollywood films, os filmes de tourada espanhóis e os de samurai japoneses. Em todos esses casos, características de produção e interesses de consumo se conjugam na formação de paradigmas narrativos e estéticos capazes de se cristalizarem em gênero.

O Brasil também tem ou teve seus gêneros próprios, frutos de derivações e particularizações de gêneros mais universais. Vamos abordar aqui os mais clássicos. Antes de qualquer coisa, é preciso não confundir gênero com tema. Filmes podem ter temas em comum mas pertencerem a gêneros diferentes. Por outro lado, um tema pode proliferar em certo contexto sem com isso formatar procedimentos de linguagem que o tipifiquem como gênero. Deixaremos de lado o campo do documentário, no qual os gêneros também podem ser reconhecidos (comédia, drama, policial, político, etc), mas que costuma ser erroneamente tratado como um gênero em si.

Criminais

O crime da mala (foto jornalística)

O crime da mala (foto jornalística)

A primeira cristalização de gênero próprio de que se tem notícia no cinema brasileiro são os filmes de reconstituição de crimes da primeira década do século passado e que se estenderiam até os anos 1920. O filão vinha combinar o interesse jornalístico das “fitas naturais” com os esforços inaugurais do “posado”, inclusive na forma híbrida com que apresentavam imagens reais dos criminosos (já presos) e dos locais dos crimes juntamente à encenação dos fatos com atores. Dezenas de filmes foram realizados a partir de crimes famosos no Rio e em São Paulo, mas também no Rio Grande do Sul. Pioneiros da produção como Paschoal Segreto e Francisco Serrador investiram na fórmula, usando como atrativo os títulos, muitos dos quais começavam com o designativo “O crime“: da mala, dos Banhados, da Paula Matos, de Cravinhos. Pertenceu ao gênero, aliás, o primeiro grande sucesso de bilheteria nacional. Trata-se de Os estranguladores (1908), filmado por Antonio Leal, retomada do episódio documentado pela Empresa Paschoal Segreto no pioneiríssimo Rocca, Carletto e Pegatto na casa de detenção (1906).

Retiradas da imprensa da época, as poucas informações que restam sobre esses filmes perdidos dão conta de uma concorrência acirrada pela atenção do público, já despertada pelos jornais populares a respeito de assassinatos e roubos com morte. Versões diversas eram produzidas de um mesmo crime. O recurso ao sensacionalismo, a disputa pelo acesso mais privilegiado às cortes judiciais e a corrida pelo lançamento mais ágil eram partes desse momento. Conforme Roberto Moura, em História do Cinema Brasileiro (org. Fernão Ramos), aí “já se sugere um primeiro domínio da narrativa cinematográfica, fortemente apoiada no esquema emprestado da reportagem jornalística (linear e com chaves de impacto), que permite que a ilusão de realidade das imagens animadas se confirme na impostação dramática”.

Cantantes e revistas

Ainda no final da primeira década do século XX surgem as primeiras vertentes de um gênero profusamente praticado no cinema brasileiro da primeira metade do século passado: o musical. Ainda em tempos de cinema mudo, os chamados falantes e cantantes se caracterizavam por uma conjugação de projeção e performance ao vivo. O pesquisador Jurandyr Noronha, em No tempo da manivela, supõe o que deverá ter sido o espetáculo: “Uma tela transparente, ficando de um lado o projetor, os músicos e os artistas empunhando enormes megafones; do outro lado, a plateia. É de se imaginar como se esforçavam galãs e heroínas para que as suas vozes chegassem aos espectadores, em meio a trovoadas com folhas de zinco sendo brandidas, todo o inimaginável para os efeitos sonoros”.

O cantantes, com duração que variava entre os três minutos e o longa-metragem, eram em sua maioria relacionados ao canto lírico. A inauguração do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1909, impulsionou a filmagem de óperas e operetas, assim como a projeção de similares estrangeiros, tudo  sonorizado por cantores detrás da tela. O cinema buscava assim uma identificação com arte mais nobre e tradicional.

O sucesso dos falantes e cantantes impulsionou a transposição de revistas teatrais para o espaço dos cinemas e forjou o maior êxito de público das duas primeiras décadas do século XX, Paz e amor (1910), dirigido por Alberto Moreira e Alberto Botelho (este na qualidade de “operador”). Filmes como Paz e amor, O Chantecler, O Rio por um óculo e A marcha de Cádiz, todos de 1910, mantinham as técnicas básicas dos cantantes, mas trocavam o bel canto pelas composições populares e a sátira à vida política e aos costumes e modismos da capital federal. As revistas cinematográficas incorporavam com frequência temas carnavalescos, formando um composto de gênero que seria retomado duas décadas depois pelas chanchadas.

Caiprias e sertanejos

Naturalmente foram muitos os gêneros inaugurados naquela primeira década de popularização do cinema entre nós. Adaptações literárias, melodramas e filmes históricos partilhavam a disseminação por todo o mundo. Tivemos até um pequeno ciclo de filmes “ousados”, com a eventual aparição de atrizes nuas. Mas, no âmbito das comédias, um subgênero que criou identidade própria, marcou época e se estendeu por muitas décadas foi o cinema caipira.

Na verdade, essa vertente quase sempre se caracterizou por um personagem matuto às voltas com as coisas da cidade. A inspiração vinha do Jeca Tatu de Monteiro Lobato. Também no ano mágico de 1908 surgiu o que é considerado o nosso primeiro filme inteiramente de ficção (ou “posado”). Nhô Anastácio chegou de viagem, um curta de cerca de 15 minutos, contava as aventuras de um roceiro que ia passear no Rio de Janeiro, se apaixonava por uma cantora e era perseguido pela esposa. Anastácio viraria um emblema desse tipo de personagem, no qual se especializaram atores como José Gonçalves Leonardo, Luís Bastos, Genésio Arruda (astro de Acabaram-se os otários, 1929, nosso primeiro filme sonoro) e mais tarde o prolífico Amácio Mazzaroppi. Oscarito também entraria para essa galeria, bastando lembrar que se chamava Anastácio o seu personagem caipira em O homem do sputnik.

São Paulo sempre foi um polo do filme caipira, já a partir de filmes de sucesso do pioneiro Antonio Campos, como O curandeiro (1917) e A caipirinha (1919), e de Amilar Alves, cujo João da Mata (1923) abriu caminho para o Ciclo de Campinas. O gênero, em seus primórdios, buscava exaltar a modernidade urbana através do contraste com os hábitos do homem simples do interior, enquanto retratava este com certa condescendência paternalista. Com o tempo, esses polos se inverteram, servindo o caipira então para revelar espertezas inesperadas e denunciar as mazelas da cidade grande. Ozualdo Candeias agregou perspectiva crítica e invenções formais ao gênero em filmes como Meu nome é Tonho (1969), A herança (1971), Zézero (1974) e Manelão, o caçador de orelhas (1982). Passada a sua época de ouro, o filme caipira receberia homenagens através de Marvada carne (André Klotzel, 1985) e Tapete vermelho (Luiz Alberto Pereira, 2005).

Uma derivação do caipira é o filme sertanejo, que aclimata os gêneros universais do drama, da comédia e do musical ao contexto rural do Brasil. Filmes de grande sucesso como Coração de luto (Eduardo Llorente, 1967), O menino da porteira (Jeremias Moreira Filho, 1977), Estrada da vida (Nelson Pereira dos Santos, 1983) e Dois filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005) podem ser enquadrados nesse supragênero, inevitavelmente conectado com os sucessos da música sertaneja.           

Chanchada e pornochanchada

O que se convencionou chamar de chanchada foi a retomada, já com as vantagens do filme sonoro, de um feixe de tradições do cinema do início do século XX, que englobava o filme-revista, a comédia carnavalesca e a sátira de costumes praticada no cinema caipira. A paródia de sucessos estrangeiros já vinha, por exemplo, de O viúvo alegre, produção de 1910. Em 1931, Luiz de Barros lançava O babão, versão jocosa do filme americano O pagão (1929), para a qual convergem o caipira, a música e o romance. Do mesmo ano é Coisas nossas, de Wallace Downey, inspirado no modelo de filmes-revista americanos como The Hollywood revue of 1929.

Explorando essa picada, a comédia carioca dos anos 1930 e 40 vai se tornando mais e mais antropofágica. Devora grandes êxitos de bilheteria estrangeiros e regurgita paródias radicalmente brasileiras, o que a diferencia de apropriações igualmente farsescas feitas na Argentina, em Cuba, no México, em Portugal e na Itália. O auge do gênero se daria a partir de 1941, com a fundação da Atlântida Cinematográfica e a atuação de diretores do porte de José Carlos Burle, Watson Macedo, Moacyr Fenelon e Carlos Manga. A chanchada daria margem à formação de um primeiro star-system no país, no qual brilhavam Grande Otelo, Oscarito, Eliana, José Lewgoy, Cyll Farney, Adelaide Chiozzo, Anselmo Duarte e muitos outros.

Quanto à estrutura dramática, notou Sérgio Augusto no seu livro Este mundo é um pandeiro que”o macete medular da chanchada era a troca – de objetos e identidades”. Ele reproduz os quatro estágios básicos de um enredo, segundo Carlos Manga: “1) mocinho e mocinha se metem em apuros; 2) cômico tenta proteger os dois; 3) vilão leva vantagem; 4) vilão perde vantagem e é vencido”. A Atlântida, mediante um processo de produção em série, conseguiu pela primeira vez associar o filme de gênero a um modo de produção industrial e a uma máquina de publicidade, fórmula típica do cinema de estúdio americano.

O termo chanchada, de natureza depreciativa, passou a designar todo tipo de produção vulgar no cinema brasileiro. Nos anos 1970, surgiriam as pornochanchadas, radicalização progressiva das comédias suavemente eróticas produzidas na virada dos 60 para os 70. Embora se identifiquem mais pelo processo de produção, tinham em comum a exposição de atributos anatômicos femininos, o desenvolvimento de situações cômicas e eventuais tinturas de crítica social de fundo conservador. A pornochanchada também criou um star-system à sua maneira, em torno da Boca do Lixo paulista, onde floresceram pequenos e fecundos produtores. Nos anos 80, a pornochanchada  deu progressivamente lugar ao filme de sexo explícito e desapareceu das telas.

Cangaço

Conforme Marcelo Dídimo no livro O cangaço no cinema brasileiro, o primeiro cangaceiro de que se tem notícia num filme de ficção data de 1925, em Filho sem mãe, dirigido em Pernambuco por Tancredo Seabra. Diversos filmes sobre o cançaço foram realizados enquanto Lampião e Corisco ainda cruzavam o sertão, mas o grande estopim do gênero foi o sucesso de O cangaceiro, de Lima Barreto (1953), premiado em Cannes. A partir daí, nasciam os sintagmas e recorrências do que viria a ser chamado de nordestern.

A morte comanda o cangaço (Carlos Coimbra, 1960) e Lampião rei do cangaço (idem, 1962) recolocaram o gênero na rota do espetáculo: colorido, com paisagens vistosas do Nordeste, trilha sonora pomposa e um misto de aventura, ação e romance. Somam 21 títulos os longas produzidos entre 1960 e 1980. O fato de tratar de personagens contraditórios, heróis e bandidos ao mesmo tempo, foi bem analisado por Lucila Bernardet e Francisco Ramalho Jr. no ensaio Cangaço – da vontade de se sentir enquadrado (in Cangaço  – O nordestern no cinema brasileiro, org. Maria do Rosário Caetano): “A principal característica comum a todos esses filmes é o fato de não tratarem do cangaceiro. Esses filmes todos têm seu esquema dramático centrado no personagem do herói, e esse nunca é o cangaceiro do filme; (…) o problema específico do herói é deixar o cangaço, a estória do filme é de como não ser cangaceiro”.

Os filmes ajudaram a popularizar os nomes, a indumentária e as ações dos cangaceiros. Para além dos nordesterns característicos do gênero, a figura do cangaceiro se espalharia por comédias, filmes eróticos, documentários, épicos do Cinema Novo e releituras como Corisco e Dadá (Rosemberg Cariry, 1996) e Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997).

Terrir e favela movie

Os híbridos de gênero são muito frequentes na cinematografia nacional, especialmente quando um deles é a comédia. A ficção científica, por exemplo, tem sido habitualmente mesclada com a comicidade. O terror, por sua vez, combinou-se com a comédia em filmes de diversas nacionalidades. No Brasil, Ivan Cardoso, o papa da categoria, cunhou para si o termo terrir e o praticou em quatro longas. O terrir brasileiro usa o erotismo como uma espécie de moeda num intercâmbio entre a celebração e a afronta ao estabelecido.

Favela dos Meus Amores

Favela dos Meus Amores

Por fim, resta abordar o mais recente rebento de gênero eminentemente brasileiro, o favela movie. A designação em inglês já indica o grau de internacionalização do gênero a partir do sucesso de Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002). Embora as favelas brasileiras estejam nas telas desde os anos 1930, com Favela dos meus amores (Humberto Mauro, 1935), e tenham sido fartamente tematizadas pelo cinema moderno a partir de Rio 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955), só nos anos 1990 começaram a se consolidar um léxico e uma estética identificáveis como gênero. A chegada do tráfico dotou a favela de ingredientes aptos ao filme policial, ao passo que a importação de procedimentos do filme de ação americano completava a formulação de uma receita.

Cenas de violência, infância em risco e histórias de superação e empoderamento se conjugam num favela movie típico e repercutem igualmente em documentários como Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles e Kátia Lund, 1999) e Favela Rising (2005), este rodado no Rio de Janeiro pelos ingleses Matt Mochary e Jeff Zimbalist. Houve mesmo um certo hype em torno do gênero nos anos subsequentes ao êxito do filme de Meirelles. O estilo de direção e fotografia do favela movie se estendeu a outras cinematografias, como a sul-africana (Distrito 9 e Infância roubada/Tsosi) – e a haitiana (Gangues de Cité Soleil).

Se Cidade de Deus foi o grande detonador e Tropa de elite o seu clímax em termos de sucesso no mercado interno, o favela movie, como quase tudo no Brasil, também já teve sua paródia: Totalmente inocentes (Rodrigo Bittencourt, 2012) pretendeu fazer rir com “donos” de morro, tiros a esmo e policiais de cara amarrada.

 

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