Artista de exceção, o chileno Alejandro Jodorowsky faz poesia, artes visuais e esoterismo, além de envelopar tudo isso em seus filmes. POESIA SEM FIM, raro lançamento de obra sua em cinemas brasileiros, é o segundo tomo de uma prometida pentalogia autobiográfica. O primeiro foi “Dança da Realidade”, que enfocava sua infância. Agora o vemos romper com a família, cortar literalmente sua árvore genealógica e mergulhar na vida boêmia de Santiago nos anos 1940.
A poeta Stella Díaz, o poeta Enrique Lihn e toda uma fauna de artistas mais ou menos identificados com figuras reais passam pelos braços ou pelos versos do jovem Alejandro, quando ele ainda pensava que iria ser somente mais um poeta. Mas desde cedo um velho bêbado lhe havia alertado que seu destino tinha mais a ver com “uma borboleta que queima” do que com as moscas da banalidade. O rapaz parte em busca dessa profecia a bordo de um grande delírio, que tem sido comparado a Fellini e Kusturica.
POESIA SEM FIM é uma superprodução poética que nos fascina em igual medida que nos desconcerta. As linguagens do teatro (inclusive o bunraku e o de fantoches), da ópera, da dança e do carnaval se entrelaçam sem cerimônia. Os anacronismos entram no quadro sem pedir licença, fazendo com que prédios, carros e objetos da atualidade coabitem com as referências assumidamente cenográficas da época.
Freudianamente, para se transformar de mosca em borboleta, o cineasta precisa “destruir” seus pais biológico e artístico (Neruda), certificar-se de que não é homossexual e vencer algumas culpas e desilusões para firmar-se como adulto. O filme o abandona na primeira partida para a Europa, pronto para ser retomado no próximo capítulo. O próprio Jodorowsky intervém diante da câmera para dialogar com sua juventude e empurrá-la para o abismo de todos os sonhos.
Já próximo dos 90 anos, o cineasta se dá a liberdade de sempre, mas ao mesmo tempo se exige um rigor extraordinário na construção das cenas. Ele assina também a direção de arte de um filme que envolve boa parte de sua família. Dois filhos de Alejandro têm papéis de destaque no elenco. Adan Jodorowski (conhecido como Adanowsky na música pop e autor da esplêndida trilha sonora) faz o Alejandro rapaz, enquanto o mais velho Brontis Jodorowsky, também diretor de teatro, vive o pai identificado com o nazismo. Os figurinos são da mulher do diretor, a artista visual Pascale Montandon-Jodorowsky.
POESIA SEM FIM é deslumbrante tanto do ponto de vista visual quanto sonoro e de coragem cênica. A nudez, a deformação e a caricatura surgem com naturalidade numa moldura que só não pode ser chamada de surrealista porque está fortemente ligada à tal “dança da realidade”. É assim que Jodorowsky lança um olhar lúdico e ao mesmo tempo crítico sobre os seus anos de formação e a veia conservadora do Chile. Uma obra-prima de entusiasmo e invenção.
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Carlinhos, como eu falei, antes de você ver o filme, que eu achava uma obra prima. Concordo em gênero , número e grau com você
Suas publicaçoes sao extremamente inteligentes.reflexivas e informativas
Colaboram para ampliar meus conhecimentos
Obrigada
Oi Ceci, eu que agradeço seus simpáticos feedbacks.