Quando Freud não explica

Sobre  CORPO E ALMA e THELMA, duas histórias de amor que vão além da psicanálise e invadem o terreno do sobrenatural 

CORPO E ALMA, o vencedor de Berlim e provável candidato ao Oscar de língua estrangeira, é sem dúvida um belo filme. Belo porque tem um trabalho de câmera admirável, quase preciosista, que explora através de vidros, reflexos e transparências a dificuldade de contato físico entre o casal protagonista. Belo porque tem ótimos atores em performances contidas, com minúcias de gestos exploradas pela direção meticulosa da veterana húngara Ildikó Enyedi. Belo porque sabe balancear a violência do cenário do abatedouro com a ternura de uma incerta história de amor e toques de humor muito bem-vindos.

Um filme belo mais pela maneira de contar do que pelo que conta propriamente. O que conta é uma fábula com ingredientes relativamente gastos e levemente ingênuos. A velha história do amor improvável. Um homem solitário que já havia desacreditado do amor. Uma mulher maníaca que ainda não experimentara o afeto. Eles descobrem que andam sonhando o mesmo sonho. Começam a viver uma relação de encontros somente no mundo onírico – o que o filme explora aquém do que poderia. Um dia eles decidem passar à concretude dos fatos, com a insinuação de consequência que se verá no final.

Para quem quiser mascar psicanálise, há chiclete de sobra. Corre sangue não somente no chão do matadouro, criando uma conexão líquida entre a morte e o amor. O tato tem poder simbólico um tanto óbvio na medida das deficiências física dele e psicológica dela. O excesso de memória, dedução e rigor da moça é uma gritante compensação para sua carência fundamental. Já o sonho comum aos dois entra como um desmonte do aparato psicanalítico para jogar a história no campo do realismo mágico.

Um belo filme, mas que não chega a ser grande porque, no fundo, é tão belo quanto comum.



“Proteja-me do que eu desejo” – o mote de uma célebre exposição de Jenny Holzer poderia ser um subtítulo para o thriller norueguês THELMA, de Joachim Trier. O que começa como uma simples história de conflito íntimo da jovem Thelma (Eili Harboe, magnetizante) ao confrontar sua rígida formação cristã com uma paixão homossexual logo evolui para a esfera do sobrenatural. Thelma tem o poder de transformar seus desejos em fatos, com consequências catastróficas.

Uma ingênua discussão com colegas de faculdade, logo no início, lança uma pista sobre a síndrome que afeta a moça. Nem tudo pode ser explicado pela Ciência; nem tudo pode ser redimido pela Religião. Para não mais sentir-se à margem do círculo social, Thelma vai experimentar a transgressão e entrar numa espiral que não poderá mais controlar.

Por pouco Trier e seu corroteirista Eskil Vogt não perdem também o senso de medida na reunião de ingredientes tão díspares como superpoderes mentais, crise psicogênica, herança bio-psicológica, tabus religiosos, referências simbólicas ao pecado, escravidão amorosa, atribulações familiares… Felizmente, e apesar de uma certa overdose de subtramas, o filme consegue conciliar todas as pontas numa trama afinal coesa, caso se aceite o fator extraordinário. A sobriedade da narrativa em elipses, a trilha sonora inquietante (muitas vezes quase subliminar) e o uso expressivo da estroboscopia sustentam um contínuo interesse pelo que se passa na tela.

Por mais macabro que seja o caminho, o que THELMA propõe é um conto negro de libertação pessoal e realização amorosa.

2 comentários sobre “Quando Freud não explica

  1. Como sempre seus comentarios sao perfeitos…dois filmes instigantes…..como psicanalista apreciei tambem a forma como os afetos.as fantasias podem se apresentar
    O sonho coincidente me fez pensar o quanto era uma forma menos reprimida de se comunicarem
    E o filme é belíssimk

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