É muito particular o que Marcelo Ikeda propõe no seu novo livro, Fissuras e Fronteiras – O Coletivo Alumbramento e o Cinema Contemporâneo Brasileiro. Não que o trabalho desse crítico, cineasta, professor e pensador do cinema não seja sempre contaminado por suas convicções pessoais e uma aproximação marcadamente afetiva com seus objetos de estudo. Pode-se ver isso em Cinema de Garagem e nos posts de seu blog Cinecasulofilia (dos quais uma seleção foi publicada em livro).
Mas em Fissuras e Fronteiras, o caso se reveste de uma tensão especial. Em seu constante monitoramento do cinema independente, especialmente do Nordeste, Ikeda desenvolveu uma relação simbiótica com os integrantes do coletivo Alumbramento, formado em 2006 e que dominou a produção cearense por pelo menos dez anos. Filmes como Estrada para Ythaca, Os Monstros, Sábado à Noite, Longa Vida ao Cinema Cearense, A Amiga Americana, Linz – Quando Todos os Acidentes Acontecem, Doce Amianto e A Misteriosa Morte de Pérola trouxeram ares frescos para o então chamado “novíssimo cinema brasileiro”.
O crítico mudou-se do Rio para Fortaleza em parte devido aos laços de amizade com o grupo. Nesse período, tentou conciliar as funções de parceiro (alguns filmes seus contaram na equipe com futuros membros da Alumbramento), colaborador, observador (seu curta Sabi e o longa Entre Mim e Eles documentam a realização de filmes do coletivo), divulgador em mostras e festivais, e analista crítico.
O livro reconta essa complexa vinculação de um ponto de vista muito produtivo, que combina o olhar “de fora” com a experiência da intimidade. Ikeda narra o processo de formação do grupo, sua trajetória e seus métodos de trabalho, avalia sua influência no cinema brasileiro contemporâneo e disseca cada filme em profundidade. Simultaneamente, o autor se coloca de maneira aberta e franca, expondo, não sem algum recato, seu envolvimento emocional com o assunto.
Embora não entre em detalhes muito pessoais, fica claro que, com o tempo, o relacionamento se deteriorou em duas frentes. A amizade se converteu em ressentimento enquanto a opinião de Ikeda sobre o coletivo migrava da admiração quase irrestrita para uma admoestação quanto aos rumos tomados. A partir de 2013, o Alumbramento transformou-se em produtora e avançou numa postura mais profissional perante o mercado. Para Ikeda, muito do encanto se quebrava.
O projeto gráfico do livro dá um recado: a famosa imagem da estrada bifurcada de Estrada para Ythaca é partida entre a capa e a contracapa, como a indicar uma separação de rumos.
Fissuras e Fronteiras é, portanto, uma história de amor e crítica, adesão e ruptura. Ikeda enxerga as belezas e os impasses de um projeto como aquele. Não escamoteia a forma como sua relação com o grupo norteou sua análise, o que demonstra grande honestidade intelectual. Há uma beleza ética nisso, para além da elegância do texto e do profundo conhecimento de cinema que dele emana.
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