Junto com a 2ª Mostra Cinema de Garagem, em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal e no Museu de Arte do Rio (veja a programação), Marcelo Ikeda, um dos curadores, lançou o livro Cinecasulofilia, uma seleção de textos do seu blog homônimo. A seguir, o prefácio que escrevi a seu convite.
PONTOS DE EXCLAMAÇÃO E DECLARAÇÕES DE AMOR
A primeira dificuldade que enfrento: o que é um prefácio? O que o distingue de uma apresentação, uma introdução ou uma resenha? A segunda dificuldade: entender por que Marcelo Ikeda pediu isso justo a mim. Junto com o convite, ele deu uma pista: “Acho que você tem a proximidade e a distância ideais para poder escrever esse texto”. Escrevo, portanto, sem saber muito bem o que seja prefácio e a partir desse longe/perto a que ele se refere.
Ao contrário de mim, Marcelo é um crítico com uma missão. E uma retórica para levar adiante essa missão. Através desses textos, selecionados da produção do seu blog ao longo de dez anos, ele quer passar ao leitor o elogio de uma certa ideia de cinema. O cinema que ele ama. Com uma única exceção (descubra, leitor), o que ele não ama aparece somente em rápidas referências por contraste. No cinema dos olhos de Marcelo não cabem as formas espetaculares ou do bom-gosto. Não há lugar para demonstrações de eficiência e profissionalismo, nem tampouco para “os cacoetes do filme de autor”. Até o cinema narrativo acomoda-se mal em seu raio de admirações. Em muitos aspectos, é o que nos distancia, e ele sabe disso.
Sinto-me implicado quando ele faz suas críticas da crítica e cobra textos mais permeados pela dúvida e pela disposição para a descoberta. Vejo nisso uma reprimenda à minha relativa acomodação e aos métodos um tanto cristalizados que utilizo no meu trabalho. Mas sei também de afastamentos irremissíveis entre nossas preferências e expectativas relacionadas a essa arte e esse consumo.
No entanto, estamos próximos na atenção dedicada ao cinema contemporâneo, especialmente o brasileiro. Boa parte dos textos deste livro se compõe de indagações sobre “cinema contemporâneo”, “cinema jovem” e “cinema político”. Da mesma forma, como blogueiro que também sou, compartilho essa concepção do blog como um diário de cinefilia. Mas Marcelo, ao menos aparentemente, vai bem mais fundo do que eu nesse mergulho.
É curioso perceber como, ao longo do tempo (de trás para frente no livro), as observações e análises do autor vão deixando uma certa ciência da crítica para serem cada vez mais marcadas por uma visão pessoal e afetiva dos filmes. Uma nuvem de tags dos termos utilizados certamente destacaria “vida”, “mundo”, “ser”, “encontro”, “afeto”, “humano”, “gesto”, “olhar”, “observar” e outras palavras mais relacionadas com uma fenomenologia da presença do que pertencentes a um léxico da crítica de cinema. Sim, porque para Marcelo Ikeda os filmes não passam diante dele, mas através dele. E aqui parafraseei algo que ele diz a respeito dos filmes-diário de Jonas Mekas.
Marcelo é um romântico de intelectualidade emocionada. Deseja estar junto, comentar os filmes não de fora, mas como se fizesse parte deles. Almeja aproximar-se das obras pelo tom da escrita. Quer que seu texto absorva alguma coisa do estilo do filme, ou de como ele interpreta esse estilo. Daí a dicção poética desses ex-posts, movida por um sopro de cumplicidade e comunhão. Daí o ritmo entre a racionalidade da escrita e a naturalidade da respiração, sua voz macia e subitamente avermelhada por pontos de exclamação e declarações de amor. Marcelo de fato ama o cinema que ama. Esse amor é uma maneira de olhar para si mesmo através do que vê na tela.
Por isso encontramos uma certa similaridade entre o rapaz modesto e retraído – que diz ter descoberto a vida através do cinema e em 2007 a julgava “miserável” e “hipócrita” – e os filmes de sua predileção, geralmente pequenos na produção, imperfeitos e irregulares na realização, solitários na condição mais profunda. Isso o leva até mesmo a elogiar certos trabalhos que considera picaretas, desde que feitos com sinceridade e à margem dos editais e dos chamados circuitos de legitimação.
Ética e estética, portanto, são indissociáveis nesse critério de afeto. Basta ver como Marcelo critica a “institucionalização” dos filmes mais recentes do tão querido grupo cearense Alumbramento. Ou sua desconfiança em relação à zona de conforto criada com o passar dos anos pela produtora mineira Teia. Da mesma forma, nota-se que o cinema contemporâneo determinou nele um retorno crítico ao cinema moderno como revisão do seu próprio gosto.
O que mais lhe interessa, então, é o que pode dialogar com os filmes que ele mesmo faz. Filmes de tempos e silêncios largos, compenetração formal, relação íntima com a vida. Frequentam seu panteão Mekas, Kawase, Zhang-Ke, Hsiao-Hsien, Alonso, Reygadas, Chantal, Straub, Bresson, Dardennes… Marcelo sente “a necessidade de fazer filmes para poucos, que circulem pouco, o menos possível”. Mas quando surge uma obra sólida e penetrante como O Som ao Redor, ele não hesita em reconhecer seus méritos.
Obra de um observador amoroso, os textos de Cinecasulofilia são exemplares na combinação de um olhar eminentemente romântico com ferramentas de análise sofisticadas. Na leitura absorvente e companheira deste livro, vemos a emoção do cinéfilo se misturar com o exame de planos, enquadramentos, profundidade de campo, opções de montagem, detalhes de encenação e um abrangente conhecimento da história do cinema. A aproximação que ele faz de Rosetta, dos irmãos Dardenne, a Ladrões de Bicicleta e Mouchette é uma das melhores demonstrações desse mix de qualidades.
Mas aqui estou eu, por deformação profissional, fazendo desse prefácio uma lista de elogios. Acho que não é esse o caminho. Melhor desviar para uma última consideração a respeito do blog do Marcelo e sua declaração de propósitos. Com frequência, ele afirma o intuito de expor-se através dos textos, como numa conversa consigo mesmo. Entretanto, essa intenção é continuamente sabotada, talvez pelo seu temperamento introspectivo, quiçá por alguma reserva na seleção do que viria para essas páginas. O fato é que essas referências se limitam a uma recorrente menção ao “amigo invisível”, o protagonista de Não Amarás, com quem ele se identifica; à mudança do Rio para Fortaleza, turning point em sua vida; e a esparsas confissões de cansaço pelo ato penoso de ver, ver, ver, sem parar. De resto, há uma sistemática negação da confissão, um reiterado ato de escapar para os filmes, mesmo quando a promessa é de desabafo pessoal.
Com isso, paradoxalmente, Marcelo realiza exatamente aquilo a que se propõe: que o vejamos através dos filmes e que vejamos os filmes através dele. É do seu casulo de cinéfilo que vislumbramos o homem sensível, o curador apaixonado, o gestor conflagrado, o cineasta intimista e o professor generoso.
Se isso é um prefácio, eu não sei, mas chega de adiar o prazer do leitor. Vamos ao livro!
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