Um extraviado na luta de classes

MARTIN EDEN

Ao mesmo tempo que é um filme de fácil comunicação na superfície, MARTIN EDEN é deveras complexo nas suas entrelinhas. Baseia-se no romance homônimo autobiográfico de Jack London, de 1909, que o diretor Pietro Marcello adaptou para um período incerto da Itália do século XX. A grosso modo, é a história de um trabalhador da marinha mercante que almeja tornar-se escritor. Quando um evento fortuito o coloca em contato com uma família da alta burguesia de Nápoles, ele inicia um romance e ambiciona penetrar no círculo da elite.

Martin (Luca Marinelli) entende que a autoeducação e o amor são veículos de ascensão social. Na raiz de seu devotado autodidatismo estão os estímulos de Elena (Jessica Cressy), a namorada rica, e as ideias do antropólogo Herbert Spencer (1820-1903), cultor do individualismo e do evolucionismo como formas de se alcançar o paraíso liberal. Assim Martin vai se afastando de suas raízes, embalado por uma ambição romântica, enquanto as editoras e publicações recusam sucessivamente seus escritos.

Um velho poeta socialista (Carlo Cecchi) ainda tenta incutir nele uma semente de lucidez: “O socialismo é a única coisa que pode salvá-lo do desapontamento que está por vir”, alerta. A previsão nefasta vai se concretizar de maneira oblíqua, pois de alguma forma Martin vai alcançar parcialmente o seu intento. A grande elipse que leva a isso é o ponto mais frágil do filme, quando a caracterização do personagem descamba para uma caricatura de escritor bem-sucedido e infeliz.

Até então, temos um personagem de muitas camadas, todas elas bem defendidas na interpretação intensa de Luca Marinelli, premiado como melhor ator no Festival de Veneza de 2019. O Martin Eden do filme, apesar de sua origem americana (o que transparece na disposição para travar lutas corporais), é um típico personagem extraviado na luta de classes italiana, alguém que quer fugir do proletariado mas não aceita todos os compromissos necessários com a aristocracia. Sua descrença no coletivismo o põe em choque com sua classe, que no entanto é objeto de seus escritos. O sucesso, afinal, se afigura como sua maior crise.

A julgar por este filme (o único que conheço), Pietro Marcello me parece pretender um lugar de herdeiro de nobre linhagem do cinema italiano, que inclui Bertolucci e Visconti. O pathos que brota de sua combinação de imagens e música tem a qualidade de nos transportar a um padrão estético de outro tempo. Ele filmou em película de 35mm, 16mm e Super 16mm, o que confere essa visualidade um tanto vintage. Além disso, usa recursos de um classicismo ainda sedutor, como cartas faladas para a câmera e composições modelares como esta da foto acima.

A época do filme é indeterminada. Fala-se em guerra (uma das duas mundiais), mas o vestuário e os automóveis indicam o final dos anos 1950. Os arquivos pontuam tanto manifestações anarquistas da década de 1920 como queima de livros durante o fascismo e imagens de épocas não facilmente identificáveis.

A paixão por filmes de arquivo – pelo que eu li, amplamente exercida em seus trabalhos anteriores – se manifesta aqui por inserções metafóricas – nunca meramente ilustrativas – de lutas sociais do passado, trechos de velhos filmes (inclusive dois breves planos de Limite, de Mário Peixoto, vistos abaixo) e cenas de reminiscências de Martin filmadas pelo próprio Pietro, mas com aspecto de coisa antiga.

Resta saber de que maneira essas ideias discutidas por Jack London e Pietro Marcello podem ecoar numa plateia brasileira hoje. London criou Martin Eden como uma espécie de autocrítica sobre os excessos de individualismo. O projeto de ascensão social por adesão às classes mais altas e à margem da coletividade está nas origens do neoliberalismo que hoje campeia no mundo. O anti-herói do filme personifica os impasses de uma ambição que, a longo prazo, só pode desapontar.

Leiam aqui uma boa entrevista com o diretor e o corroteirista Maurizio Braucci em inglês.

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