Trabalhar em areia movediça

VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI

Numa cena de VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI (Sorry, We Missed You), a doce Abby conta ao marido que sonhou com o casal aprisionado em areia movediça. Quanto mais eles trabalhavam, mais afundavam. O sonho era a metáfora perfeita para a situação dos dois. Ele, correndo feito um louco para dar conta do serviço de entregas; ela, para atender como cuidadora aos vários clientes que precisa visitar a cada dia. Ken Loach, o advogado dos britânicos pobres, nos brinda com mais uma de suas insuperáveis “fatias de vida”.

A história se inspira no caso de Don Lane, funcionário de empresa de entregas que morreu em 2018 enquanto se esfalfava no trabalho em vez de tratar sua diabetes. No filme, temos Ricky (Kris Hitchen), desempregado da construção civil que aluga uma van para se ligar a uma empresa similar à DHL. Os termos da franquia são típicos da era neoliberal. Por trás de um discurso que promove a ilusão da autonomia e da meritocracia, o que se oferece de fato é uma forma de autoescravização: metas tirânicas, sanções pesadas por qualquer falha, níveis baixos de remuneração e nenhuma assistência social ou garantia trabalhista. É o que se tem chamado de “uberização do trabalho”. Ou, para os americanos, “gig economy“.

Vimos isso recentemente no documentário Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, sobre a indústria de jeans em Toritama, PE. Ken Loach opera numa ficção naturalista que se aproxima do documental, baseada na incrível capacidade de observação do seu habitual roteirista Paul Laverty. Por conta disso, as duas vertentes dramáticas de VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI fluem em absoluta harmonia.

De um lado, o trabalho. Ricky se desdobra nas entregas, escravizado pelo scanner que controla sua performance e por um sistema impiedoso que visa somente o desempenho. Abby (Debbie Honeywood) teve que vender o carro para cobrir o depósito de aluguel da van e corta Newcastle de ônibus para atender aos seus descapacitados.

De outro lado, a família, que ameaça se desintegrar. O filho adolescente falta à escola, comete pequenos delitos e se ocupa de pichar a cidade com alguns amigos. Ele recusa o modelo de vida dos pais, e não há como não lhe dar certa razão. A filha menor, mais centrada, também começa a apresentar sintomas de instabilidade emocional.

Ricky e Abby lutam para manter a família unida em meio à intensa peregrinação e aos dissabores do trabalho. Longe de sucumbir às fórmulas mais comuns do gênero, Laverty e Loach conservam um olhar equilibrado e humanista sobre cada um dos personagens. Junto com as angústias e a impaciência há também a ternura e a compreensão mútua, características de gente de verdade, e não de figuras puramente dramatúrgicas.

Isso fica ainda mais patente pela forma como são conduzidos os diálogos populares e as interações, que de tão genuínas soam mais vividas que encenadas. Os atores e atrizes se portam com um verismo excepcional, como se fossem assim mesmo desde que nasceram. Como em tantos filmes de Loach, não assistimos a seus personagens, mas convivemos com eles. Da mesma forma, a ausência de qualquer adorno formal ou espetacular nos suga para dentro do filme, reduzindo enormemente a distância entre tela e poltrona.

Não quero concluir esse texto sem deixar um comentário sobre o modelo de dramaturgia que Loach e Laverty praticaram também em Eu, Daniel Blakee Loach ainda no distante Cathy Come Home, de 1966. Um modelo que eu apelidaria de “ladeira abaixo”: o personagem esmagado por um sistema (Daniel e Cathy, pelo estado; Ricky, pelo neoliberalismo empresarial), mas também pela falta de sorte, vivendo um período em que tudo parece dar errado. A sucessão de infortúnios que atinge aquela família a coloca num ponto fora da curva. Assim, pode até ser questionada como metonímia da situação social descrita.

Isso, contudo, não reduz a força do filme, nem sua importância como instantâneo da atual degradação das relações de trabalho. Não diminui a sensação de desassossego em que nos deixa o final súbito, em plena areia movediça.

Ken Loach nos conforta não com soluções fáceis, mas com as delicadezas que podem surgir mesmo na correnteza das aflições.

P.S. O título brasileiro não faz muito sentido. Sorry, We Missed You é a mensagem da empresa para os clientes que não são encontrados em casa para receber as encomendas. Mas soa também como a despersonalização cada vez maior do trabalhador num sistema que o faz oprimir a si mesmo e não lhe oferece nenhuma proteção.

 

2 comentários sobre “Trabalhar em areia movediça

  1. Pingback: O ano em que vivemos em perigo | carmattos

  2. Órimo, Carlinhos! Perfeito. Mande para Carta. Eu estou mandando meu comentário SOBRE O FLME daqui a pouco com o link da bela entrevista do Loach ao The Guardian que publicamos em CM, outubro passado. Sugeri ao Joaquim publicarmos junto sua resenha e nosso comentário.

    PARA SUBIR DOMINGO DE MANHÃ. Beijo.

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