A cidade sem voz

LA ANTENA na Netflix 

Um curiosíssimo filme argentino de 2007, nunca lançado em cinemas por aqui, faz sucesso na Netflix. E não tem Ricardo Darín, nem um punhado de gente simpática travando diálogos espirituosos. LA ANTENA é uma ficção científica distópica que dialogava engenhosamente com o cinema mudo bem antes de O Artista fazê-lo.

Numa cidade não identificada, num tal ano XX que evoca as décadas de 1920/30, as vozes dos habitantes foram sequestradas por um certo Sr. TV, figura mabuseana que domina as atenções e o consumo da população. As pessoas se comunicam por leitura de lábios e se alimentam apenas com o biscoito Alimento TV, que os mantém escravos do fabricante. Só dois indivíduos conservaram suas vozes: a cantora La Voz e, sem que ninguém mais saiba, o seu filho, um garoto sem olhos.

Para conseguir um controle ainda maior sobre a cidade, o Sr. TV sequestra La Voz e planeja colocar o canto dela no ar, o que lhe serviria para roubar também as palavras dos cidadãos. É onde entram os heróis da história. Um técnico de conserto de TVs e sua ex-mulher enfermeira se reconciliam e, junto à filha, tramam uma maneira de evitar a usurpação.

Não é fácil deglutir tantas maquinações num roteiro cheio de elipses estranhas e signos que não se esclarecem, como as cicatrizes nas mãos da família central ou o material de que são feitos os biscoitos. A originalidade da história concebida pelo diretor Esteban Sapir tem o custo de ser às vezes incompreensível – ou amalucada demais. Mas se abrirmos mão da racionalidade e nos ligarmos na matéria fílmica, a recompensa é garantida.

Em seu segundo longa (o primeiro foi Picado Fino, de 1996), Sapir dá provas de uma sofisticada cinefilia. Filmando em película Super 16mm preto e branco, ele faz referências fartas e explícitas ao expressionismo alemão, sobretudo Metropolis, O Vampiro de Düsseldorf e a série do Dr. Mabuse; às trucagens seminais de Georges Méliès, com citação direta de Viagem à Lua; ao Buñuel surrealista e ao cinema épico soviético, este especialmente pelo uso dramático dos letreiros.

Mais de um ano de pós-produção foi necessário para forjar a visualidade exuberante do filme, que mescla cenários diferentes no mesmo quadro, combina ação viva com animações stop-motion e efeitos de computação, e usa uma disposição espacial dos letreiros própria da estética dos quadrinhos. A música energética e onipresente de Leo Sujatovich confere um elã de ópera audiovisual.

A beleza das composições e o sabor retrô de LA ANTENA nos fazem desculpar um certo déja vu dessa alegoria sobre o poder orwelliano da mídia e a vilania dos magnatas tiranos (com direito a suástica). A supressão da voz e o roubo das palavras são metáforas um tanto óbvias de um mundo que estimula o consumo silencioso e a letargia política.

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