O FUNERAL DAS ROSAS no streaming
“O espírito de um indivíduo atinge sua verdade absoluta através da negação incessante.” Letreiro final do filme
A influência exercida sobre Stanley Kubrick em Laranja Mecânica (1971) tornou-se a maior referência de O Funeral das Rosas (1969). Mas isso é muito pouco para dimensionar a relevância desse filme não só na Nouvelle Vague Japonesa, mas em todo o cinema queer mundial. Depois de algumas exibições esparsas no Brasil e de aparecer em comunidades de troca cinéfila, a obra-prima de Toshio Matsumoto fica, enfim, disponível em versão restaurada e impecável na plataforma Supo Mungam Plus.
O primeiro longa de Matsumoto foi também o filme de estreia da estrela transgênero Peter, nome artístico de Ikehata Shinnosuke. Descoberta num bar gay de Tóquio aos 17 anos, ela seguiria carreira no cinema e nos palcos, tendo interpretado o bobo da corte no Ran de Kurosawa. Em O Funeral das Rosas, ela é Eddie, a queridinha do Bar Genet (uma das muitas referências à cena cultural e contracultural da metade do século passado). Seu sucesso junto aos frequentadores e principalmente ao dono do bar, o traficante de drogas Gonda (Yoshio Tsuchiya, um dos poucos atores profissionais no elenco formado por amadores e minicelebridades urbanas), desperta o ciúme da “madame” Leda (Osamu Ogasawara), uma tavesti que encarna o modelo da geisha tradicional. A rivalidade com a popíssima Eddie significa, portanto, uma mudança de paradigmas na representação de transgêneros e crossdressers.
Em torno desse fiapo de trama – mas que nunca é perdido de vista -, o filme traça um painel exuberante da cena queer de Tóquio na época, com destaque para a área de Shinjuku. Eddie circula entre gays, travestis, jovens descolados, junkies, ativistas políticos, gente do cinema pornô e um coletivo que faz vídeos de vanguarda inspirados em Nam June Paik. Um integrante desse último grupo dá a chave para o espírito do filme ao citar Jonas Mekas: “Todas as definições de cinema foram apagadas. Todas as portas foram abertas”.
Matsumoto não só as abriu, como escancarou. Com uma fotografia virtuosística em preto e branco de Tatsuo Suzuki, o diretor ataca em todas as frentes: planos-sequência enredantes (como uma rodada de baseado que parece não ter fim), cenas aceleradas à moda do cinema mudo, quadrinhos, letterings (textos na tela), entrevistas documentais, cinema-verdade, clipes experimentais relâmpago trazidos de seus curtas anteriores, estroboscopias, cenas coreografadas, performances de rua, outtakes (planos supostamente cortados da montagem) e até uma impossível câmera subjetiva do ponto de vista de uma pessoa cega.
As ousadias se estendem à forma de mostrar o universo gay e trans com franqueza e naturalidade absolutas, embora deliciosamente ultrajantes. As cenas de homoerotismo são sensuais, apesar de não explícitas. Eddie é um dândi narcisista que ama o próprio corpo, esquadrinhado em banhos voluptuosos. Os símbolos perpassam todo o filme – das rosas (o termo “bara” em japonês tanto é rosa como pejorativo de homossexual) às formas fálicas, às facas e ao fatalismo de um carro funerário que corta a cena por duas vezes.
A porção trágica do título resulta de um subtexto melodramático que vai sendo gradativamente desdobrado e envolve os pais de Eddie. Não é à toa que, em dado momento, vê-se uma parede forrada de cartazes do Édipo Rei de Pasolini. No fim das contas, O Funeral das Rosas vai ser uma versão muito peculiar da tragédia de Sófocles, sendo Eddie um possível diminutivo de Édipo.
No caudal de referências percebe-se um misto de influência e diálogo com a Nouvelle Vague francesa: jump cuts (cortes em salto) e quebras brechtianas de Godard, manipulações do tempo mental de Resnais, corpos filmados como paisagens à moda de Hiroshima Mon Amour. Mas há também vínculos com o underground americano, como o já citado Jonas Mekas. A sequência da dança-bacanal ao som de psych-rock evoca o ambiente de criação da The Factory de Andy Warhol. Os figurinos, por sua vez, se assemelham aos da swinging London. O cineasta dentro do filme se chama Guevara e cita o escritor Le Clezio, outros acenos à mitologia ocidental da época.
Nada disso contradiz a essência da própria Nouvelle Vague Japonesa, com seu coquetel de transgressões formais e temáticas. Esse movimento foi em grande parte viabilizado pela Art Theatre Guild, sistema de produção, distribuição e exibição que tornou possíveis este e filmes de Nagisa Oshima, Shohei Imamura, Mashiro Shinoda e outros expoentes dos anos 1960.
Desde a década anterior, Toshio Matsumoto tentava fundir documentário e experimentalismo. Exemplo disso é o curta A Canção das Pedras, de 1963, que pode ser visto legendado no Youtube. Muitas passagens de O Funeral das Rosas se dão na fronteira entre ficção, documentário e performance. A história é frequentemente interrompida por entrevistas frontais com “garotos gays”, travestis, viciados em drogas e com os próprios atores/atrizes comentando sobre seu personagem e o trabalho no filme. Durante a rodagem de uma cena pornô com Eddie, a câmera abre para revelar toda a equipe em volta da cama, dirigida pelo próprio Matsumoto. A alusão aqui é à onda do cinema erótico underground (ou “pink”), emergente na Tóquio de então.
Não tenho notícias sobre a recepção do filme em 1969, mas é possível imaginar o impacto de tanto atrevimento reunido em 105 minutos de pura intensidade. Até 2017, quanto foi restaurado, era um tesouro pouco conhecido internacionalmente. Kubrick, porém, já reconhecia a inspiração direta para a concepção estética do seu Laranja Mecânica. Nesse vídeo comparativo pode-se conferir as semelhanças nas cenas aceleradas com música clássica e nos sorvetes fálicos. Mas há muito mais, seja nos figurinos, no estilo de montagem e na direção de arte, seja em detalhes como os cílios postiços imensos.
Mais um excelente texto aqui no blog: uma detalhada apreciação formal desse filme que sintetizou um conjunto de componentes da linguagem cinematográfica dos “cinemas novos” trabalhado ao longo de década de 1960, com informações contextuais preciosas.
Uma ótima notícia da restauração, finalmente, desse filme obrigatório!
Agradeço o comentário, querido João Luiz.