Diversão de domingo:
Uma das pessoas mais bem-humoradas que conheço é meu amigo Ricardo Cota. Ótimo crítico de cinema, ele anda afastado dessa atividade por força de seus compromissos no poder público – é coordenador de comunicação do governo Sérgio Cabral. Essa situação o deixa à vontade para curtir com a cara dos colegas críticos. Sua correspondência é sempre divertida. Depois de ver Tio Boonmee, o vencedor da Palma de Ouro de Cannes, e discordar dos elogios dominantes, ele fez o seguinte relato de sua experiência no Unibanco Arteplex:
“O filme começa. Um boi, ou seria uma vaca?, rumina. Silêncio. Não. Sons. Cigarras e ou grilos. Bailam corujas e pirilampos entre sacis e as fadas. Até que lá no fundo azul da noite da floresta surge aquele que mais tarde saberemos ser o macaco-fantasma de luminosos olhos vermelhos.
Uma mesa de jantar. Tio Boonmee lamuria a iminência da morte. Aparece uma mulher fantasma e se revela que não é só Tio Boonmee que tem o poder de ver os antepassados. Os outros também.
Chega o macaco-fantasma.
Nesse momento, na sala de cinema, duas jovens se levantam e saem.
Não, não têm o perfil de jovens desenganadas que foram atrás de Desenrola e acabaram nos braços peludos do macaco-fantasma. Não.
Elas saem por um motivo que deduzo espiritual, zen budista: estão achando tudo um saco.
Como principiante na contemplativa prática do zen budismo, saio do meu zen sonambulismo e me vejo, como alguns personagens do filme, em dois lugares paralelos.
A cabeça seguiu com as moças; o corpo continua ali, inerte.
Enquanto isso, na tela, uma princesa de rosto deformado entra num riacho e faz sexo, suponho que oral, com um bagre que fala. O sexo oral, que supus, praticado pelo bagre, bem entendido.
Volto a pensar nas moças. Onde estarão? No café do Arteplex? Na livraria? Ou já descansadas em suas respectivas residências?
Tio Boonmee agora está numa caverna habitada pelos macacos-fantasmas agonizando, morrendo até morrer.
Sou covarde, não saio. Sou forte, não durmo.
Em off, um personagem reflete sobre olhos abertos que não vêem.
Me identifico.
Agora um jovem zen budista despe o manto e toma uma chuveirada. Depois convida a Tia Boonmee, que ainda não morreu, para jantar. Ela não quer. Quer ver tevê com a filha. Eis que num passe de mágica, o filme se divide em dois planos: o monge permanece frente à tevê e ao mesmo tempo está num bar jantando com a tia.
Só então percebi a genialidade de Tio Boonmee.
Trata-se de um filme sobre a possibilidade de se estar e não estar em dois lugares ao mesmo tempo. Da dialética entre perda total ou apenas parcial de tempo. A inevitável dinâmica entre a vida no hall do Arteplex e a morte nos braços do macaco-fantasma.
E aí entendo a atitude corajosa das meninas, essas sim!, zen budistas. Elas não estavam mais na sala; mas ao mesmo tempo estavam. Sacaram?
Devia tê-las seguido. Mas covardemente me mantive abraçado ao macaco-fantasma de radiantes olhos vermelhos.
Definitivamente, tenho muito que aprender com o zen budismo.
Ou, melhor ainda, com o bagre ensaboado”.
Ricardo Cota
Verdade verdadeira. Ainda mais depois de (quantos anos, mesmo?) ser assessor do governador (qual mesmo?), o moço tem muito a aprender com o zen-budismo.