Em termos de cinema, há um cisne branco e um cisne negro dentro de Black Swan. O cisne branco é a ideia básica de associar o desequilíbrio físico da bailarina, sinal de sua queda profissional, ao desequilíbrio mental que acomete a perfeccionista Nina Sayers. O filme de Darren Aronofsky trata principalmente de equilíbrio e dualidade – o que, em princípio, soa irresistível quando ligado ao tema da dança.
É cisne branco também a performance excepcional de Natalie Portman, que pode não ser a nova Moira Shearer (a bailarina de verdade que protagonizou Sapatinhos Vermelhos), mas está muito próxima de ser uma Audrey Hepburn para o século 21. É impossível não pensar numa piada cruel ao vê-la tomar, na trama, o lugar que era de Winona Ryder (Beth), outrora namoradinha da América.
A fotografia de Matthew Libatique, claustrofóbica fora do palco e ambivalente nas cenas de espetáculo, e a montagem precisa de Andrew Weisblum também são cisne branco. Colocam o espectador no centro das tensões e da atmosfera de pesadelo e respondem pelo que Black Swan tem de melhor: uma técnica admirável.
Mas essas qualidades são traídas por um emaranhado de péssimas ideias, assim como as virtudes da Princesa Odette em O Lago dos Cisnes são traídas pelo cisne negro representado por Odile. No filme, para viver ambos os papéis, Nina Sayers precisa trazer à tona o cisne negro que tem dentro de si. O uso da metáfora, nesse caso, é desastroso.
O Lago dos Cisnes já foi objeto de muitas adaptações irreverentes. Matthew Bourne já montou o balé só com homens. Graeme Murphy conectou a história dos cisnes com o triângulo amoroso Charles-Diana-Camila. John Neumeier usou a trama para falar de Ludwig da Baviera e sua paixão por cisnes. Mas duvido que algo tenha sido mais caricato do que essa proposta de transformar a magia da mulher-cisne numa historinha de terror ao gosto dos adolescentes que adoram ver mutações sanguinolentas e corpos dilacerados.
O lado cisne negro de Black Swan é um pequeno monstro engendrado por clichês de melodrama barato e lugares-comuns entre realidade e imaginação. Nina projeta sua culpa por ter assumido o papel de Beth no medo de perdê-lo para a novata Lily. A cena de sedução lésbica, que tanto hype tem gerado para o filme, é tão ousada quanto supérflua (muito embora Mila Kunis, cá entre nós, mereça consideração sexual mesmo da mulher mais hetero do planeta). Subjugada pela mãe, reprimida sexualmente, assombrada por fantasias persecutórias, Nina vive cenas que frequentemente rondam o ridículo, tamanha é a falta de sutileza de Aronofsky, aliás proverbial. Os exageros sonoros e visuais chegam às raias do grand-guignol, fazendo do filme uma mistura indigesta de traços de Sapatinhos Vermelhos, Repulsa ao Sexo, A Malvada e Carrie, a Estranha. Se não dá para imaginar, então veja o filme.
Não por acaso, Black Swan e O Concerto dividem os acordes altissonantes e populares de Tchaikovsky. Cisne negro é também aquela concepção kitsch da música e do balé clássicos como território das “grandes emoções”. Um universo onde as pessoas estão sempre a um passo da euforia ou da explosão de fúria. O coreógrafo vivido por Vincent Cassel personifica esse pastiche de suposta elegância cênica, autoritarismo bem intencionado e frases bombásticas a respeito de “impulsos selvagens” e “deixar-se levar pela paixão”. O nível é esse: vulgaridade e sapatilhas.
Duas coisas em especial me incomodaram: a trilha sonora excessiva, às vezes parece querer acompanhar o filme, mas em outros momentos parece supérflua; e aqueles efeitos especiais… qual a necessidade daquilo, meu deus-do-cinema? O único momento que gostei dessa artimanha foi na cena do balé em que Nina se transforma no cisne negro, achei que ficou bonito. Mas devo dizer que esperava mais do filme (ou seja, MENOS).