A arte, a rua, o lixo, o autor

Entre os cinco filmes que disputam o Oscar de longa documental no próximo dia 27, um dos favoritos é Exit Through the Gift Shop. O badalado dossiê sobre arte de rua é assinado pelo inglês Banksy, a maior e mais misteriosa celebridade da área. As histórias por trás e as dúvidas em torno da produção são quase tão saborosas quanto o próprio filme.

Enquanto organizava as ideias para escrever um texto sobre o assunto, encontrei esse post de Leandro Calbente, que disseca as questões de uma maneira tão inteligente e completa como eu não seria capaz.

Quero apenas destacar outros dois pontos que merecem nossa reflexão.

Um deles é a dúvida como valor estético na arte contemporânea. Há muito deixamos para trás o socorro das certezas e das formas clássicas e puras. Mas, nunca como antes, vivemos agora senão o império do fake, pelo menos o reino do duvidoso. Exit… nos deixa o tempo todo cara a cara com a desconfiança. Será mesmo aquele homem encapuzado, meio diretor, meio personagem, o Banksy de que tanto se fala? Se é mesmo, o que o teria levado a confiar de tal forma naquele francês com jeito de picareta? Terá Thierry filmado de fato tudo o que vemos da street art em ação na primeira e mais excitante metade do filme? E o que haverá de forjado na segunda metade, quando Thierry supostamente passa de tiete com câmera a estrela emergente da street art?

O que mais perguntamos hoje em dia (ou nem perguntamos mais) é onde está o limite entre obra de arte e mistificação, valor artístico e valor de mercado, imagem real e cena fabricada. Assim como o ramo das artes plásticas, o dos documentários está coalhado de obras que, com maior ou menor grau de explicitação, trabalham nessa fronteira. Kiarostami, Coutinho, as turmas dos mockumentaries e dos mashups – são muitos os praticantes da arte da dúvida, os questionadores da “cópia fiel” ou da aura da obra original. Em tempo de reprodutibilidade vertiginosa e expansão sem limites do espaço artístico, o conceito de grande arte tende a virar, literalmente, peça de museu.  

O título do filme, livremente traduzido por “Saída pela Loja de Presentes”, refere-se àquela instância intermediária entre a rua e o museu. Ali onde pastamos na ilusão de ainda reter um pouco da aura do museu enquanto compramos bugigangas, cópias vulgarizadas, alusões de quinto grau. A Monalisa numa caneca. A um passo dali, estamos de volta às ruas, onde uma intervenção de Banksy, de Shepard Fairey ou de Os Gêmeos pode nos reconduzir à experiência da arte, já do outro lado, onde ela supostamente não caberia.

Outro ponto é o paralelo que se pode fazer entre Exit Through the Gift Shop e seu concorrente Lixo Extraordinário, que também disputa o Oscar. Ambos tratam da arte em locais “inadequados”. Ambos mostram personagens que se transformam através desse contato direto com o(s) artista(s). No entanto, poucos filmes poderiam ser tão diferentes. O doc de Banksy trata da arte como algo impuro, sujeito à dúvida e à mistificação. Sai do museu para a rua, passando pela loja de presentes. Lixo Extraordinário, contrariamente, vê a arte como instrumento de elevação. Leva a rua (ou seu paroxismo, o lixão) para o museu. A pulsão política de um é anárquica e transgressora, seja em relação à sociologia urbana, seja em relação às normas do mercado de arte. No outro, a política se faz pelo discurso da inclusão social/cultural, pela transformação do outro, pela validação institucional.

Em Exit…, o autor do filme e artista-tema se esconde no capuz e na voz distorcida, cedendo o lugar do personagem principal ao que seria o autor da maior parte do material. Uma confusão se estabelece em relação à autoria, o que é parte importante dessa paisagem contemporânea. Já em Lixo…, Vik Muniz é o centro absoluto de toda a operação, mostrado com clareza e insistência pelos realizadores. Ao mesmo tempo que afirma repartir a autoria dos quadros com seus personagens, Vik reafirma na verdade sua postura de maestro e mentor.

Nas tensões opostas em vigor nesses dois filmes, temos um belo instantâneo dos docs sobre arte. Um que aposta na dúvida sobre o estatuto da arte, o outro na certeza da arte como coisa nobre.

***

No Cinema Eye Honors, premiação anual de docs nos EUA, Exit Through the Gift Shop ganhou melhor filme e montagem. Leia abaixo um trecho da fala de Banksy, lida na cerimônia pelo produtor do filme:

“Quero agradecer ao Cinema Eye Awards. É ótimo ser reconhecido por pessoas tão obcecadas pelo gênero documentário. Em outras palavras, gente ainda mais retardada socialmente do que eu. Imagino que alguns de vocês estejam começando a achar isso aqui meio suspeito. Como ter certeza de que essa cerimônia é real? Mas eu gostaria de assegurar-lhes categoricamente que essa noite de premiação não está sendo encenada por atores para uma paródia que estou fazendo sobre o circuito dos prêmios. Eu quero dedicar esse prêmio a todos os que já olharam para o estado do mundo e pensaram ‘eu não posso ficar aqui numa boa vendo isso acontecer… eu tenho que botar isso em fitas’.”             

3 comentários sobre “A arte, a rua, o lixo, o autor

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