Três filmes

Pílulas críticas sobre O CONTO DOS CONTOS, O DÉCIMO HOMEM e OS INIMIGOS DA DOR

Esqueça Disney. Esqueça mesmo recriações hollywoodinas recentes de fábulas como “Caminhos da Floresta” e “Malévola”. O CONTO DOS CONTOS, embora falado em inglês com atores internacionais de ponta, não é para crianças pequenas nem grandes. Fica mais próximo de um bestiário medieval, sem pejo de soar cruel para idosos e feios como nos velhíssimos tempos. O filme de Matteo Garrone (“Gomorra”, “Reality”) é livremente baseado no livro homônimo, também conhecido como “Il Pentamerone”, de Giambattista Basile (século XVII), uma espécie de pai de todos os contos de fadas. Intercala histórias de três reinos comandados por soberanos cujos caprichos vão provocar uma série de tragédias sangrentas.

Uma princesa condenada a se casar com um ogro, uma mulher idosa que inadvertidamente cai nas graças de um rei libertino, uma rainha obcecada por ter um filho e outro rei devotado à criação de um inseto que não para de crescer – eis algumas das estranhezas que Garrone encena mais com a seriedade de um nórdico do que com a expansividade de um italiano. A direção de arte é magnífica, os figurinos estão no limite da sátira e a envolvente trilha sonora traz um Alexandre Desplat mais inspirado em Nino Rota do que nunca. A lembrança de Fellini vem ao caso por uma distante semelhança com o seu “Satyricon”, apenas um tanto menos exuberante e mais homogêneo e circunspecto.



É muito bom ver Daniel Burman voltar ao universo dos seus melhores filmes, a comunidade judaica de Buenos Aires. O DÉCIMO HOMEM faz uma cronicomédia sobre os sete dias da semana do Purim em que Ariel (Alan Sabbagh), recém-chegado de uma temporada em Nova York, é engolido de volta pelas tradições e o modo de vida de sua família. O título brasileiro e internacional, melhor do que o original “El Rey del Once”, faz menção a um daqueles preceitos que todo judeu deve obedecer mesmo sem saber a razão e a origem. Desse tipo de discrepância é que os bons comediantes judeus – como Burman e Woody Allen – tiram o melhor do seu humor autoderrisório.

Esse filme faz par com o documentário “Siete Dias en El Once”, rodado por Burman em 2004. O agitado El Once é o maior bairro judeu da capital argentina. Ali se pode encontrar, por exemplo, a única barbearia da cidade onde um ortodoxo pode ter o seu cabelo cortado sem tirar o quipá. Entre as muitas lojas e galerias comerciais, o filme trata de uma exótica fundação administrada pelo pai de Ariel – a quem só se ouve ao telefone mas quase nunca se vê – e destinada a repassar os bens deixados pelos mortos aos vivos necessitados. Um ar de Frank Capra perfuma o cinema enquanto Ariel tenta compreender os desígnios do pai (desde a infância, por sinal) e furar a crosta de gelo de uma atraente, mas muda, funcionária da fundação (Julieta Zylberberg).

Burman talvez seja um tanto despretensioso demais nos ingredientes dramáticos dessa história, mas em contrapartida é certeiro e minucioso na observação de costumes, contradições e absurdices de sua pequena galeria humana. A fundação e seu dono Usher existem de fato e integram o caráter meio documental do filme, o que nos conecta com os personagens e os ambientes mesmo quando a trama parece não avançar como devia. Burman está mais interessado em pintar um quadro do que desenvolver uma intriga. E o quadro, apesar da fotografia quase monocromática, é bastante colorido.



Até parece que Aki Kaurismäki desembarcou com sua bagagem de surrealismo melancólico no cinema uruguaio. OS INIMIGOS DA DOR começa justamente com o estranho desembarque de um estrangeiro (no caso, alemão) no aeroporto de Montevidéu. O homem chega sem nada, e nada se sabe dele durante um bom tempo. Vai sendo levado numa cadeia quase absurda de acasos e encontros inesperados pelas áreas e edifícios mais ermos e degradados da capital uruguaia. Seu caminho vai cruzar com o de um vigilante abandonado pela mulher, um sem-teto que não sabe por que ainda está vivo e um menino explorado por uma igreja evangélica. Em cada um desses personagens o nosso azarado protagonista vai encontrar um pouco de si mesmo. O filme, no fim das contas, trata dos laços de solidariedade que aparecem da identificação entre os homens a partir da dor, da carência e do risco.

Essa coprodução Uruguai-Brasil tem de brasileiro basicamente o trabalho de finalização (produzido por Matias Mariani) e duas referências idiomáticas: uma parede escrita “O diabo mora aqui” e a voz do pastor de uma Igreja Universal. Vem a calhar no momento que vivemos.

Na direção, a estreia do diretor de fotografia uruguaio Arauco Hernández Holz, passando aqui a câmera para o veterano alemão Thomas Mauch, que trabalhou com Werner Herzog e Alexander Kluge e foi um dos responsáveis pela estética do Novo Cinema Alemão nos anos 1970. Se o roteiro pode soar um tanto mirabolante demais, com toques surrealistas perdidos na narrativa e alguns lances obscuros, no quesito construção cênica rende bons frutos a parceria Holz-Mauch. INIMIGOS DA DOR é fluente e sugestivo na sua forma de pesadelo, ainda que não saibamos muito bem quem está sonhando com quem.

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