Se Woody Allen morresse este mês (toc toc toc), CAFÉ SOCIETY poderia ficar como um ótimo filme-testamento. Lá estão muitos sintagmas essenciais de sua obra: o romantismo acridoce, a história de ascensão social, a sátia aos gângsteres, as tiradas da indefectível família judia, o olhar nostálgico e ao mesmo tempo irônico ao glamour do passado, o elogio a Nova York. Depois de um início fraco, que me fez temer (opa, sem maiúscula!) o pior, o enredo desliza saborosamente a partir do encontro de iniciantes entre Bobby e uma prostituta. O rapaz cheio de bons propósitos, mais um alterego de Allen, vai se beneficiar e ao mesmo tempo criticar a cultura da fofoca e da ostentação da Hollywood dos anos 1930. A paixão pela secretária do seu tio poderoso o colocará numa enrascada profissional e amorosa.
Todos os detratores de Allen devem estar apontando mais uma repetição de si mesmo e dos padrões da velha Tinseltown. De fato, este é um dos filmes mais codificados do diretor, com seus cortes em “cortina”, narração romanesca pela voz do próprio e os tons cálidos da fotografia do mítico Vittorio Storaro. Os personagens, embriagados em suas ilusões amorosas, poderiam ter saído de letras das canções da dupla Rodgers & Hart, como indica uma menção recorrente no filme.
É justamente aí que os fãs de Allen (entre os quais me enquadro) vão encontrar uma bem-vinda familiaridade, expressa na mistura de humor e ternura por todas as criaturas em cena. Além, é claro, de alguns dos seus melhores chistes judaicos e de brilhantes sacadas de roteiro, uma delas envolvendo uma carta de amor de Rudolph Valentino. Suntuosamente produzido e cenografado, CAFÉ SOCIETY pode não ser uma pepita de originalidade, mas faz tanto bem ao fígado quanto faz suspirar o coração.
Os filmes épicos antigos, como as igrejas, eram feitos para impressionar e converter. Os modernos, como os templos evangélicos, são feitos para excitar e ludibriar. O novo BEN-HUR combina velocidade de game com estética de Bollywood. A câmera, movida por cinegrafistas que parecem acometidos pelo Mal de Parkinson, sacoleja freneticamente para multiplicar a sensação de movimento. A edição atropela a ação como se até uma discussão familiar equivalesse a uma corrida de quadrigas. É preciso insinuar que tem muita coisa acontecendo o tempo todo na tela para que ninguém se distraia com o celular. Não há, claro, nenhum sentimento de época naqueles rostos e cortes de cabelo tão contemporâneos, na calça comprida apertada de Esther, nem na exclamação “Uaaau!” do herói em plena Jerusalém da época de Cristo.
Confesso que, depois de uma primeira meia-hora soporífera, a partir da prisão de Judah Ben-Hur e até a famosa corrida eu não me desinteressei totalmente do filme. As cenas das galés, o ataque dos navios gregos e a preparação de Judah para o confronto com o irmão embrutecido pelo ódio passaram pela minha garganta sem maiores dificuldades. Em compensação, depois que Rodrigo Santoro é crucificado, o epílogo milagreiro e reconciliador excede toda medida razoável. É como se a mensagem cristã do perdão tivesse ficado esquecida no roteiro e alguém se lembrasse de empurrá-la inteira nas cenas finais. Seguidas rapidamente por uma cançãozinha ordinária que expulsa os fiéis da sala para dar mais tempo aos recolhedores de lixo. Assim nem Jesus salva.
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