As conveniências, ontem e hoje

AMOR & AMIZADE, adaptação de Jane Austen, e a comédia popular FUNCIONÁRIO DO MÊS tratam da manutenção de status social e financeiro na Inglaterra do século XVIII e na Itália contemporânea. 

Meu conhecimento de Jane Austen não é suficiente para saber se “Lady Susan” é o seu livro mais venenoso ou se AMOR & AMIZADE é que é a transposição cinematográfica mais venenosa de sua obra. O fato é que, desde a apresentação dos personagens em efígies, passando pelos tambores e fanfarras irônicas da trilha sonora, até a mordacidade com que Susan Vernon vocaliza sua verve manipuladora, o filme de Whit Stillman desnuda toda pompa e circunstância das famílias aristocráticas do século XVIII.

Lady Susan (Kate Beckinsale) é tida como um estudo das futuras personagens femininas de Jane Austen. Viúva recente e em dificuldade financeira (“não moramos mais, visitamos”), ela se hospeda com parentes enquanto tenta encontrar novo marido e um pretendente rico para sua filha. O orgulho e as manobras que utiliza, envolvendo a paixão de um jovem romântico (Xavier Samuel) e o interesse de um idiota abastado (Tom Bennett, divertidíssimo), fazem dela uma víbora sedutora, em quem, aparentemente, ainda não floresceram as virtudes compensatórias das heroínas de “Orgulho e Preconceito” e “Razão e Sensibilidade”.

A adaptação transforma o romance epistolar numa sucessão ininterrupta de diálogos que podem exaurir o espectador até que ele entenda quem é quem na trama. A tradução desperdiça muito do sabor crítico das falas. Mesmo assim, vale a pena enfrentar a pletora verbal, pois é na palavra que Austen revela o espírito de um lugar e de uma época em que a busca do bem-estar econômico e o cultivo da imagem social sobrepujavam qualquer ideal romântico. É interessante observar como, apesar da verbalização incessante, vários ardis da protagonista são executados longe de nossos olhos e ouvidos, chegando-nos por vias indiretas. Nesse sentido, somos também vítimas de Lady Susan.



O músico, ator e roteirista Checco Zalone é um fenômeno do cinema italiano. O FUNCIONÁRIO DO MÊS bateu o recorde de “Avatar”, tornando-se o filme de maior bilheteria na história da exibição italiana. Suas comédias anteriores, “Che Bella Giornata” e “Sole a Catinelle”, todas dirigidas pelo mesmo Gennaro Nunziante, já haviam galgado a terceira e segunda posições naquele ranking. Nem a crítica, nem a própria indústria italiana sabem explicar as razões de tal sucesso. Vendo O FUNCIONÁRIO DO MÊS, é mesmo difícil acreditar.

Não que falte humor ao filme. O ritmo de gags verbais e situacionais é tão intenso que as mais pobres e gastas são logo compensadas pelas mais espertinhas. O que falta mesmo é um distintivo em relação a conhecidas fórmulas de humor televisivo. Nem de longe uma figura engraçada, Checco Zalone depende fragorosamente dos diálogos e dos coadjuvantes que lhe servem de escada. Quando estes não funcionam, o humor patina no vazio.

A história do funcionário público disposto a qualquer remoção para não perder seu emprego estável cumpre o papel de sátira do namoro italiano com a corrupção, as infrações e a esperteza. Os contrastes com a civilizada Noruega e a ameaçadora África, além do romance com uma mulher de currículo amoroso eclético, reforçam estereótipos e veiculam “amáveis” preconceitos que continuam fazendo sucesso popular. Mas há também um paralelo satírico com as reformas trabalhistas do Primeiro-Ministro Matteo Renzi, que desagradaram sindicatos e mexeram com a estabilidade de algumas categorias. Como filme político, O FUNCIONÁRIO DO MÊS é um estímulo a que os italianos larguem suas garantias e se aventurem fora dos escritórios.

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