Depois de 44 anos sem rodar um longa (em 2014 ele filmou o curta “Pé no Chão”), Sérgio Ricardo estreou na Mostra de Tiradentes BANDEIRA DE RETALHOS, uma homenagem à resistência popular. Não é mera ficção, mas sim baseia-se na experiência testemunhada pelo próprio diretor quando morava parte do tempo num barraco do Morro do Vidigal em 1977. Com o pretexto de proteger os moradores de deslizamentos, mas na verdade tentando favorecer um empreendimento imobiliário, a prefeitura queria removê-los para um subúrbio distante.
BANDEIRA DE RETALHOS mostra a organização da resistência, o enfrentamento das autoridades e as contradições que se instalam na comunidade. Nem todos concordam em fincar pé na favela, nem todos confiam nas formas de luta coletivas. Há mesmo um triângulo amoroso envolvendo uma bela morena (Kizi Vaz), seu marido trabalhador (Marcello Melo) e um antigo namorado bandido que foge ao cerco da polícia (Renan Monteiro). Numa cena memorável, a moça goza na cama enquanto xinga o parceiro.
Sérgio Ricardo reata seu eterno laço com uma representação do povo nascida no Cinema Novo e praticada ao longo dos anos 1970. Seu curta “O Menino da Calça Branca” (1961) e o longa “Esse Mundo é Meu” (1964) se passavam em favelas, e a célebre música “Zelão” foi inspirada num deslizamento de terra que soterrou vários barracos. BANDEIRA DE RETALHOS não se ocupa em julgar a atitude dos moradores do Vidigal, mas apenas em elogiar sua firmeza e, eventualmente, deplorar uma tragédia.
O músico-cineasta-pintor está em seu elemento, ou seja, o cinema e o teatro populares. A história já havia sido encenada pelo grupo Nós do Morro. O filme reproduz estrutura semelhante, baseada numa sucessão de rodas: de samba, de candomblé, de conversa, de discussão. Vez por outra, os diálogos assumem a forma de cordel rimado. As canções de Sérgio pontuam a narrativa sem necessariamente impor a forma do musical. Tambores e berimbaus marcam o ritmo da ação quando cessa o domínio da palavra.
O elenco é quase todo composto de atores do Nós do Morro, com o auxílio luxuoso de Antonio Pitanga (um velho griot cego), Osmar Prado (o deputado Délio dos Santos, que defendia a população carente do Rio na época), Babu Santana (um vendedor de armas), Bemvindo Sequeira (português do boteco) e Guti Fraga (advogado).
A produção de Cavi Borges, com aportes do Canal Brasil, da Caliban e de um crowdfunding, possibilitou mais esse retorno de um cineasta histórico brasileiro. Sérgio Ricardo se amolda a uma forma de cinema jovem e barata, mas continua o mesmo cantador romântico de uma épica do povo que toma nas mãos as rédeas do seu destino.
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