LEAVING NEVERLAND
LEAVING NEVERLAND é um filme chocante. E não é somente pelos pormenores que Wade Robson e James Safechuck relatam dos abusos sexuais sofridos em companhia de Michael Jackson quando eles tinham entre 7 e 14 anos. Logicamente, ouvir como Michael se masturbava diante das nádegas abertas de um menino de 7 anos ou como exibia filmes pornô comendo pipoca e ensinava os misteres do sexo oral a seus pequenos amores é mais que suficiente para abismar qualquer um. Mas o filme de Dan Reed tem muito mais a revelar.
LEAVING NEVERLAND é um filme chocante por trazer a imagem de um Michael Jackson calculista, municiado de estratégias para manter seus pupilos leais a seus segredos e os adultos distantes dos seus “matadouros”. Aí incluem-se closets dentro de closets, portas em sucessão para que qualquer aproximação indesejável fosse percebida a tempo e doutrinações sobre a maldade dos “outros”, em especial das mulheres.
LEAVING NEVERLAND é um filme chocante por mostrar as entranhas de uns Estados Unidos corrompidos pelas promessas de celebridade e riqueza. As táticas de sedução de Michael, como descrito por Wade, James e suas mães e irmãos, passava pela persuasão das famílias. O superastro fazia-se praticamente adotar pelos pais dos meninos, exibindo sentimentos de solidão (provavelmente reais, apesar de patológicos). A sedução logo se convertia em corrupção com a oferta de viagens, presentes sem limite de preço, longas estadas na megafantasiosa Neverland e, sobretudo, a companhia do deus pop, item mais ambicionado dos anos 1990.
LEAVING NEVERLAND é um filme chocante porque deixa clara a conivência das duas mães, senão com evidências, pelo menos com as suspeitas de que suas crianças podiam ter um relacionamento pouco saudável com um homem adulto que insistia em dormir na mesma cama com elas. As duas mães frequentavam as moradas de Michael e eram mantidas a prudente distância, especialmente à noite. Embora não seja insinuada em nenhum momento do filme, não há como afastar a ideia de que essas mães foram induzidas a prostituírem seus filhos em troca de luxo, bens, carreira e proximidade da fama.
Dividido em duas partes, o filme ocupa-se, na primeira, de descrever a gênese e a evolução da relação entre Michael e os dois meninos. Os depoimentos (aqui cabe bem a palavra “depoimento”) de Wade e James são tensos, mas surpreendentemente calmos, como fruto de algo que já foi muito refletido e sopesado. Num dos momentos mais dramáticos, James conta o casamento de brincadeira que teve com Michael e mostra a aliança e outras joias com que o “noivo” comprava a fidelidade e o silêncio dos garotos.
Na segunda parte, Dan Reed concentra-se mais no caso de Wade Robson, que se tornou coreógrafo famoso e teve sua família australiana destruída depois que a mãe separou-se do pai e do filho mais velho para mudar-se para a Califórnia com Wade e a filha a convite de Michael Jackson. O drama familiar é explorado como mais uma acusação ao cantor, desdobrando-se numa história de culpas muito típica da moral americana.
Não se tem ideia de quantos meninos estiveram sob a aura estelar de Michael, vítimas ou não de pedofilia. Os relatos de Wade e James sugerem uma alta rotatividade nos privilégios do astro. Os dois rapazes explicam por que depuseram em defesa de Michael em 1993, quando surgiram as primeiras denúncias. E por que decidiram em 2013 admitir que mentiam e contar a verdade. Só não explicam adequadamente a razão de terem processado o espólio de Michael quatro anos depois de sua morte, pedindo indenizações milionárias pelo período em que foram molestados na infância. As duas causas foram perdidas por conta do tempo decorrido desde então.
O espólio agora está processando a HBO pela exibição do filme. Os advogados pedem mais de 100 milhões de dólares pelos danos causados à imagem e ao legado de Michael. Ao fim e ao cabo, resta a impressão de que toda essa história de pipoca, pornografia e processos tem o mesmo fundo: it is all about money.
Pingback: Meus filmes preferidos em 2019 | carmattos