Sobre o documentário AS CORES DA SERPENTE e o thriller NÓS
A Serra da Leba serpenteia lindamente no Sudeste de Angola, passagem de turistas e viajantes por um dos cartões postais do país. Em 2015, um grupo de grafiteiros, oriundos de várias equipes e escolas de arte angolanas, além de alguns estrangeiros, se reuniram para cobrir seis quilômetros de muros nas encostas sinuosas da serra. A proposta era trocar as pichações anárquicas e obscenas dos paredões por imagens potentes da cultura africana. Um bravo projeto de embelezamento e decolonização.
O documentário AS CORES DA SERPENTE, do jornalista baiano Juca Badaró, fez o registro dessa iniciativa. Ouviu artistas, apoiadores, fotógrafos e até um turista encantado com a surpresa ao passar por ali. O Coletivo Murais da Leba incluía mulheres, para desmentir que o grafite fosse coisa de homens. O resultado da obra lembra bastante a East Side Gallery, pintada em parte do Muro de Berlim.
A ideia louvável de eternizar aquele processo de criação coletiva esbarra, porém, numa organização narrativa caótica e na opção por falas “desencarnadas” em off que tornam tudo muito vago e sem calor. O longo prólogo de danças rituais numa aldeia não se conecta claramente com o assunto principal, ficando somente a intenção de, talvez, ilustrar a origem cultural de algum padrão artístico. Um bom consultor de roteiro teria feito imenso bem a esse documentário colorido pelas boas intenções.
Corra!, a meu ver, foi apenas um filme curioso e superestimado. Mas NÓS, o novo opus de Jordan Peele, é pura tapeação. A intenção reiterada de fazer uma alegoria crítica sobre a sociedade americana através do horror, desta vez, naufraga numa avalanche repetitiva de clichês do gênero e numa trama obscura que nunca consegue articular de maneira inteligível o que gostaria de dizer.
A matança entre as pessoas e seus duplos zumbis, saídos do subterrâneo de uma “América” desprivilegiada, se dá numa sucessão cansativa de golpes sanguinolentos, caretas bestiais, maneirismos corporais e grunhidos. O ridículo supera de longe qualquer suspense ou choque. As alusões evidentes a O Iluminado soam rasteiras e despropositadas, enquanto o clipe Thriller de Michael Jackson ecoa um pouco mais organicamente. A questão racial se esgota num paralelo tosco entre a família negra e a família white trash. O roteiro é uma cambulhada sem pé nem cabeça.
Há também uma referência irônica ao megaevento beneficente que estendeu cerca de 6,5 milhões de pessoas de mãos dadas numa corrente humana através do país em 1986. Jordan Peele certamente quis trabalhar entre o horror e a comédia para expor as vísceras de desigualdade do sonho americano (US = United States, ok…). Eu, pelo menos, não enxerguei nada além de um subproduto da cultura da catarse pela violência. Saí do cinema de estômago embrulhado em mais de um sentido.