Fela Kuti bem de perto

MEU AMIGO FELA no Festival É Tudo Verdade

Em um dos excelentes materiais de arquivo coletados por Joel Zito Araújo em MEU AMIGO FELA, Fela Kuti chega a uma sala, tira toda a roupa exceto uma sunga minúscula, senta-se numa poltrona e, cercado de algumas de suas esposas e seu saxofone, diz coisas como: “No caso da África, a música não pode ser feita pelo prazer. Tem que ser pela revolução”. A cena condensa todo o espírito de um personagem tão fascinante quanto contraditório (ao menos para os nossos padrões).

O nigeriano Olufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti (1938-1997) reuniu em si uns tantos paradoxos de um homem africano que tinha um pé na modernidade e outro nas tradições tribais. Formou-se em Londres mas fez carreira na África. Combinou influências do jazz americano com o suingue subsaariano. Confrontou ditaduras com a mensagem de Malcolm X e ao mesmo tempo foi o onipotente dono de um harém voluntário de até 27 esposas simultâneas. Foi preso político durante quase dois anos e teve sua comuna (a “República Kalakuta”) destruída, mas também foi acusado de embolsar o pagamento dos seus músicos. Tentou uma candidatura à presidência da Nigéria e passou um tempo cultuando um guru de Ghana que era a impostura em pessoa. Morreu de Aids em decorrência de promiscuidade sexual.

Carlos Moore e Fela Kuti

No É Tudo Verdade de 2014, assistimos ao documentário Finding Fela, de Alex Gibney, que partia de um espetáculo da Broadway sobre Fela Kuti. Era um bonito e clássico trabalho de cinebiografia, mas não tinha a potência que encontramos agora em MEU AMIGO FELA. Em lugar de acumular informações de fontes heterogêneas, Joel Zito deixou-se pautar pelas memórias de algumas pessoas-chave na vida do músico. A principal delas, que serve de âncora, é Carlos Moore, cientista social cubano, biógrafo de Fela e ex-segurança de Malcolm X, que hoje vive no Brasil. Destacam-se ainda Sandra Izsadore, a esposa pantera-negra que fez sua cabeça sobre africanidade; Najite Mukoro, esposa integrante do seu harém; o baterista Tony Allen e dois designers de capas de seus discos.

A estética gritante das capas dá o mote para o tratamento visual do filme, parte importante de sua poderosa empatia. A batida do afrobeat come solta enquanto ganhamos uma visão íntima e complexa do homem-azougue que contestou tanto a opressão dos poderosos quanto os padrões morais e religiosos do seu tempo. A militância pan-africanista (nem marxista, nem capitalista) acarretou represálias duríssimas dos militares, que em 1977 atacaram sua comuna, estupraram mulheres, espancaram Fela e causaram a morte de sua mãe.

Ao mesmo tempo, conhecemos detalhes da conduta de um típico “rei” africano com sua corte de submissos, que mandava bater nas mulheres e ordenou que espancassem um desafeto, o que foi feito até a morte.

MY FRIEND FELA estreou no Festival de Roterdã e ganhou o Prêmio Paul Robeson de melhor filme sobre a diáspora no maior festival de cinema africano do mundo, o Fespaco de Burkina Faso. O reconhecimento que Joel Zito vem recebendo por esse filme se deve não somente à perspicácia com que, junto à montadora Isabel Castro, agregou aqueles testemunhos cheios de vida e emoção sobre Fela. Deve-se também à maneira como ele inseriu o personagem no contexto da resistência negra dentro e fora da África. Uma linhagem notável se estende de Malcolm X, inspiração fundamental de Fela Kuti, a heróis da africanidade que tombaram ou foram perseguidos por suas ideias. Que essa genealogia venha terminar em Marielle Franco é só mais uma afirmação de que a luta por identidade e direitos, com ou sem música, continua.

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