TORRE DAS DONZELAS

Dilma reencontra ex-companheiras da Torre das Donzelas na posse do seu segundo mandato (esta cena não é do filme)
A nobreza da mulher brasileira não poderia estar melhor representada do que pelo elenco de TORRE DAS DONZELAS. São cerca de 30 ex-presas políticas que por algum tempo dividiram as celas do Presídio Tiradentes, entre 1968 e 1970. Entre elas, a ex-presidente Dilma Rousseff.
Susanna Lira preparou um brilhante dispositivo de ativação de memória. Reconstruiu a ala feminina do presídio, chamado de Torre das Donzelas, numa versão estilizada que lembra o cenário de Dogville, de Lars Von Trier. Recheou o espaço com móveis e objetos evocadores do período em que viveram ali. E então convidou as mulheres a visitá-lo e rememorar, reeditando um pouco da convivência de 50 anos atrás.
O cenário, minuciosamente concebido por Glauce Queiroz, foi utilizado também para pequenas encenações com jovens atrizes, que pontuam as falas das personagens reais com ecos do passado. A montagem inteligente e dinâmica desses materiais (de Célia Freitas e Paulo Mainhard) gerou um tecido narrativo de grande eficácia e pungência.
Embora centrado na ditadura, TORRE DAS DONZELAS se lança sobre a atualidade com uma força política semelhante à de O Processo e Democracia em Vertigem. Ali estão mulheres que pegaram em armas para defender um ideal e por isso foram presas e torturadas. Nunca, porém, se deram por vencidas. Conseguiram extrair vida da proximidade com o horror e com a morte. A maneira como narram isso no filme é de causar admiração e inspirar resistência.
Elas desenham a planta da “Torre”, emocionam-se ao entrar no recinto cenografado, releem poemas de Carlos Marighella, cantam, choram e riem como se o tempo fosse uma massa maleável. Relembram a dor de ver uma companheira ser levada para a sala de tortura e depois voltar machucada e degradada. Recordam o terror das revistas de surpresa, que poderiam encontrar os livros “subversivos” trazidos, não se sabe como, para dentro da cela. E ainda os grupos de estudo e discussão política formados na grande cela coletiva. “Fiz minha formação política ali dentro do Tiradentes”, conta Dilma.
A ex-presidente é uma das poucas que não compareceram à “Torre” cenográfica. Em compensação, são dela algumas das falas mais contundentes e expressivas sobre a experiência da cadeia. “A prisão (sobreviver a ela) é ter o controle do espaço e do tempo. E ler para não se isolar”. Obviamente, ela deve ter explicado isso a Lula em Curitiba. Em outro momento, Dilma conta que não suportava a rotina de “ginástica e trabalhos manuais, trabalhos manuais e ginástica…” Um dia levantou a voz: “Não foi pra isso que eu fui presa! Aguento tudo, menos ginástica e trabalhos manuais. Não vamos transformar isso aqui numa prisão”.
Não só de lembranças dolorosas se faz o filme de Susanna. O fato de terem conseguido se divertir foi uma das pequenas vitórias que levaram à vitória maior. As comidas improvisadas na cela sem nenhum talento culinário, a confecção de bordados e badulaques para ajudar financeiramente as famílias, os cuidados com a beleza para os dias de visita, o “desfile de modas” organizado com as roupas finas fornecidas pela família rica de uma delas – tudo era motivo para superar o horror e minorar a perda da liberdade. Para muitas delas, foi um período de autoconhecimento e crescimento interior, sem que nisso vá qualquer elogio ao encarceramento. “Tentar humanizar o extremamente desumano é uma tarefa hercúlea”, diz Dilma, e completa: “Nós fugimos de uma visão penitente da cadeia. Ali dentro, eles não mandavam mais em nós”.
Na pauta das densas conversas na “Torre” reconstituída, estão também a consciência de parecerem simples terroristas aos olhos da população mal informada, o dilema entre resistência e delação na tortura, a necessidade de quebrar o silêncio sobre isso na vida posterior. E a comoção da hora da despedida, quando uma companheira deixava a “Torre” ao som de Dorival Caymmi.
Extremamente bem construído, com um desenho sonoro evocativo dos medos e dos reconfortos vividos no presídio, o filme de Susanna Lira faz rir e chorar como poucos no cinema brasileiro. E não fica restrito ao passado. Ao contrário, projeta uma força inspiradora para os momentos atuais de arbitrariedade e estado de exceção disfarçado de democracia.
Numa cena, uma delas relata o que ouviu de um agente do DOPS: “Você conhece os direitos humanos da ONU? Pois então esqueça”. Como se vê pela atitude dos poderes constituídos hoje em Brasília, o mesmo descaso permanece, só que agora não mais clandestinamente. Nesse aspecto, o Brasil não melhorou nada entre 1970 e 2019. Daí a potência de TORRE DAS DONZELAS para nos alertar sobre o pesadelo que vivemos e o que ainda poderá vir se as forças democráticas baixarem a guarda.
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