Maurice Capovilla, um dos grandes do cinema moderno brasileiro, é mais conhecido por clássicos como O Profeta da Fome, O Jogo da Vida e Subterrâneos do Futebol. Mas Capô tem uma interessantíssima obra feita para a televisão nos anos 1970 e 1980 que pouca gente conhece. Alguns desses trabalhos podem ser vistos na rede.
Sobre cada um deles, selecionei trechos do livro Maurice Capovilla – A Imagem Crítica, que escrevi em parceria com o diretor. Em primeira pessoa, Capô comenta o contexto de realização dos programas e algumas escolhas que fez.
Quem tiver interesse na íntegra do livro, clique aqui para baixar o PDF.
DO SERTÃO AO BECO DA LAPA (1972)
“A ideia para o programa Do Sertão ao Beco da Lapa surgiu em torno de uma mesa do bar do MAM-SP. Chegou às minhas mãos através de Almeida Salles uma carta de Guimarães Rosa, contendo um suposto mapa das fazendas da região de Cordisburgo (MG), onde ele havia vivido. Aos meus olhos, aquilo merecia, senão um filme, pelo menos um belo programa sobre ângulo inédito da vida de Rosa. Rudá de Andrade e eu sugerimos, então, realizar um Globo Shell sobre o período de formação de três escritores: Rosa, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade.
Do Sertão ao Beco da Lapa se completava com um episódio de Rudá de Andrade, contemplado no subtítulo E o Mundo de Oswald.”
BAHIA DE TODOS OS SANTOS (1974)
“Minha estreia no selo Globo Repórter se deu com uma inusitada adaptação literária. A Globo havia comprado um pacote de títulos de Jorge Amado, imaginando que todos eram romances. Mas eis que Bahia de Todos os Santos era um “guia de ruas e mistérios” da cidade de Salvador. Foi repassado à (produtora) Blimp para ver no que dava. Eu li de uma tacada e fiquei fascinado com a apresentação da cidade através de seus personagens históricos e míticos. Pedi as passagens e fui para a Bahia com um diretor de produção e o fotógrafo Hélio Silva. Faltavam poucas semanas para o carnaval de 1974.
Com a ajuda de uma pequena equipe local e sem muita pesquisa prévia, abrimos os trabalhos com uma longa entrevista de Jorge Amado, que poderia servir para vários programas. Em seguida, saímos à cata de nossas personagens. Mas, afinal, que personagens? Muitas do livro já estavam mortas.
Um célebre carnavalesco baiano estava anunciando o próprio suicídio na Rua Carlos Gomes porque a Bahiatursa, órgão do governo, não tinha custeado o seu carro alegórico, como fazia todos os anos. Saímos à sua procura e o filmamos contando como seria o desenlace. Ele morreria queimado pelo fogo expelido da boca de uma sereia cenográfica. Num acordo surrealista, combinamos filmar ao vivo o evento, previsto para a sexta-feira de carnaval.”
O ÚLTIMO DIA DE LAMPIÃO (1975)
“Uma medida da liberdade que tínhamos no Globo Repórter foi a experiência de mistura de linguagens proposta, em 1975, por O Último Dia de Lampião. O projeto, que considero um dos meus melhores trabalhos para a TV, partiu de uma vasta, mas dispersiva pesquisa de Amaury Araújo sobre o fenômeno do cangaço. O que mais me interessou foi a indicação de testemunhas ainda vivas dos dias finais de Lampião no esconderijo de Angicos, em Sergipe, onde parte do bando foi dizimado. Não se tratava de “ouvir dizer”, mas de encontrar remanescentes capazes de falar diretamente para a câmera.
Escolhido o episódio da morte do mito, ocorreu-me a ideia de não apenas fazer um documentário baseado na pesquisa e nos depoimentos, mas usar tudo isso como base para uma dramatização dos conflitos daquele dia fatídico.
Ancorar a reconstituição histórica em dados comprovados não deve ser uma limitação para o cineasta. Muito pelo contrário, é o que lhe garante a liberdade de experimentar sem o risco de trair seu objeto. Reconstituir, por exemplo, o momento da morte solitária de Getúlio Vargas seria um despropósito. Ninguém sabe sequer como ele empunhou o revólver. Nesses casos, é melhor partir para a dramatização livre, sem qualquer apoio documental. Não aconselho ninguém a reconstituir a devoração do Bispo Sardinha pelos índios caetés…”
O BOI MISTERIOSO E O VAQUEIRO MENINO (1980)
“Ao longo de dez anos, eu vinha pesquisando a história do tal Boi Mandingueiro, que circulava na mitologia do sertão e nos folhetos de cordel. Quando passei por Pernambuco, fazendo Terra dos Brasis, conheci o casal Plínio e Diva Pacheco, assim como a cidade cenográfica de Nova Jerusalém, criada por eles. Desde então, sempre que podia, passava por lá e me deliciava com um imenso acervo de cordel, os poetas e cantadores que sempre havia ao redor. Conversava com a peãozada que lidava com o gado, gravava o áudio de depoimentos, poetas e cantadores. Com isso, fui montando a história do Boi. Ao mote já existente – coronel promete a filha em casamento a quem capturar um boi que vadia pelas suas terras –, fui acrescentando camadas de referência ao poder no sertão e às produções da imaginação popular.
Esse material me permitia dar vazão à influência de Brecht, relevante na minha formação. Eu gostava do teatro brechtiano, embora achasse aquele método mais adequado ao cinema, que favorecia o distanciamento. No meu entender, o cinema materializava necessariamente a realidade e despsicologizava o real. Nessa fase da minha carreira, eu costumava combater o psicologismo como algo que afastava o artista dos processos sociais.
Minha leitura da história do Boi não era estranha ao materialismo crítico. Eu fazia uma negação da utopia. Via no Boi um mecanismo de ocultação do conflito que existia na realidade. O Boi, como produto imaginário, escondia a miséria, a impotência. O mito seria a negação da ação. De alguma maneira, a moral da história era essa: se você sai atrás do boi, perde o seu momento, a sua história.”
CRÔNICA A BEIRA DO RIO (1980)
“Tão logo concluídas as filmagens do nosso cinecordel pernambucano, eu mergulhava na praia de Rubem Braga, ao som da Bossa Nova e em companhia de Paulo Mendes Campos. Costumava encontrar ambos os cronistas no bar Antonio’s, no Leblon. Já havia trabalhado com Paulo, mas não tinha maiores laços com Rubem. No entanto, era fã de suas crônicas, uma das quais, sobre um casal de amantes que se isola num quarto, eu já quisera transpor para a tela.
Embora Rubem fosse capixaba, não via “fotógrafo” mais habilitado a retratar o Rio. Juntamente com Paulo, escolhi 19 textos que delimitassem aspectos característicos: o mar, o interior da cidade, a mulher e a noite. Imaginamos o próprio Rubem como personagem, ou melhor, narrador de si mesmo. E, para completar, usamos o seu duplex de Ipanema como cenário para as evoluções de Jorge Dória no papel de “O Cronista”.
O roteiro final de Crônica à Beira do Rio combinava elementos de crônicas diversas e criava simultaneidades interessantes. Linearmente, descrevia um dia na vida da cidade, da manhã à madrugada seguinte.”
O PRINCIPIO E O FIM (1980)
“Organizamos a produção na colônia italiana de Caxias do Sul, onde se passava o conto original de Josué Guimarães, incluído no livro Os Ladrões. Na história, o velho Padre Carapella, chamado para fazer um batismo, retorna à região onde crescera e celebrara sua primeira missa. Vem montado num burrico e acompanhado de um pequeno sacristão, Tininho. Eles representam o princípio e o fim.
Mas o título também se refere a essa viagem do padre por um passado que não reconhece mais. O tema de fundo são as transformações sofridas pelas colônias rurais italianas. As famílias cresceram muito e a terra, não. Daí os jovens migrarem para as cidades, deixando velhos e casas vazias para trás.
As tradições locais apareciam na forma de cantos, jogo de truco, paixão pelo vinho. Fizemos uma bonita abertura com fotos de imigrantes italianos e usamos muita música de Ennio Morricone, além da inevitável Merica, Merica, Merica.”
MULHER DIABA (1981)
(Telefilme dirigido por Xavier de Oliveira e produzido/supervisionado por Capovilla, que também colaborou na montagem)
“Enquanto eu filmava no Sul, Xavier de Oliveira dirigia, em Jaú (interior de São Paulo), o quarto telefilme da série. Com um prazo exíguo para concluir os quatro filmes, convidei-o para dirigir a adaptação de Jorge Andrade. Não me arrependi. Acho Mulher Diaba o melhor de todos. Xavier conseguiu uma verdade incrível no meio daquele canavial. Colocou atores como Lélia Abramo, Ariclê Peres e Geni Prado no meio de cortadores de cana para contar a história de uma inusitada disputa: quem cortasse 20 toneladas de cana num só dia levaria a cobiçada Didieta. O viúvo Gregório e o moço Severino viviam um encarniçado duelo de trabalho braçal somente para, no fim das contas, ver Didieta partir com um motorista de caminhão que não tinha entrado na história.”
Manuelzão personagem de Guimarães, que grande encontro revelador, Capovila é um grande que revela grandes