Com muito orgulho, transcrevo a seguir a resenha do meu livro Sete Faces de Eduardo Coutinho por Claudia Mesquita, recém-publicada na Luso-Brazilian Review da Universidade de Wisconsin (volume 58, Number 1, 2021, pp. E9-E12).
Mattos, Carlos Alberto. Sete faces de Eduardo Coutinho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019. 347 pp.
por Claudia Mesquita
A obra de Eduardo Coutinho (1933-2014), cujo impacto crítico e o poder de influência no quadro da produção documental brasileira contemporânea são inestimáveis, ganha com Sete faces de Eduardo Coutinho, de Carlos Alberto Mattos, uma abordagem sintética e, ao mesmo tempo, renovada. Sem desconsiderar a densa rede de leituras tecida a muitas mãos em torno da obra extensa de Coutinho, o livro se diferencia pela riqueza documental, a visão de conjunto, o estilo não-acadêmico e, especialmente, o modo como articula vida, pensamento e obra, como notou Bia Lessa na “orelha” da publicação. Tecendo cuidadosamente passagens e imbricamentos entre episódios biográficos, reflexões éticas e estéticas e proposições artísticas de Eduardo Coutinho, Mattos nos oferece não apenas análises sensíveis dos filmes, mas todo um fora de quadro: os processos criativos do cineasta se expandem para além dos filmes prontos, incluindo também intenções não concretizadas, projetos não realizados e ideias que se transmutam em outras, no decorrer de 50 anos de reflexão e produção audiovisual (intensificadas nos últimos 15 anos da vida do diretor).
Tendo começado no cinema na primeira metade da década de 1960, e integrando, portanto, a geração do cinema novo, Eduardo Coutinho traçou um percurso singular, sobretudo pela escolha firme (ainda que tardia) do documentário – forma de realização e expressão que abraçou com intensidade quando já tinha em torno de 50 anos. Autor de Cabra marcado para morrer (1984), obra paradigmática da redemocratização brasileira, balanço histórico único dos efeitos da ditadura militar (1964-1985) sobre a luta popular no campo nordestino, Coutinho depurou, a partir de então, um método muito próprio de trabalho – que trazia implícita uma “teoria do documentário”, fruto de intensa reflexão ética e estética, como Leandro Saraiva já pontuou: apostando mais e mais, sobretudo a partir de Santo forte (1999), no cinema como encontro e conversação, seus filmes destacam “uma condição de possibilidade do cinema documental: a relação entre quem filma e quem é filmado” (ver “Narrativa da subjetividade em Edifício Master”, no livro Eduardo Coutinho, Editora Cosac & Naify, 2013, p. 558). A partir de diferentes recortes, e tendo a entrevista como abordagem progressivamente exclusiva, o cineasta buscou colocar em cena as performances verbais e narrativas de brasileiros comuns (sobre quem pesaram estereótipos, representações redutoras ou simplesmente a invisibilidade). O rigor com que conduzia os seus processos – da pesquisa à montagem, passando por todos os pormenores da abordagem – equivalia ao empenho em situar sua perspectiva em cena, cuidando para não objetificar as filmadas e filmados nem reduzir a sua alteridade.
Com um texto preciso, fluente e muito bem informado, Mattos nos franqueia acesso, no tempo, à práxis e à reflexão ética e estética de Coutinho, nunca dissociadas – pensamento-cinema “implícito” que sustenta, por assim dizer, a força dessa obra notável, marcada, entre outros aspectos, pela consciência crítica, a auto-reflexividade e a depuração constantes. Abre-se para nós toda uma possibilidade “arqueológica”: os filmes prontos de Coutinho aparecendo como aquilo que “resta”, a “borra” (como dizia o cineasta Andrea Tonacci) de uma trajetória de vida, trabalho, pensamento, trocas, referências. “Vale a pena considerar os rastros de outros projetos correlatos que ficaram para trás” (p.223), escreve Mattos, por exemplo, ao tratar de O fim e o princípio (2005) – empenho documental que notabiliza, cabe dizer, toda a abordagem de Sete faces de Eduardo Coutinho.
Descobrimos, por exemplo, na primorosa parte dedicada a seu sétimo longa-metragem documental, que Coutinho escrevera um argumento (cujo exemplar, registrado em 2003 na Biblioteca Nacional, trazia a palavra “falso” anotada a lápis), prevendo uma viagem filmada ao Nordeste, em busca de personagens que teriam aparecido nos registros fotográficos e fílmicos da Missão de Pesquisa Folclórica organizada por Mário de Andrade em 1938. E que, em outra sinopse para um argumento, escrito antes das filmagens de O fim e o princípio (iniciadas em junho de 2004), o diretor falava em realizar um trabalho “sobre a conversação (troca de palavras)” não apenas como meio, mas como tema, com acento em suas “formas línguísticas (e performáticas)”. Um filme, enfim, “de conversa sobre a conversa” (p.224), como Mattos nos diz – algo que Coutinho já vinha, de alguma maneira, experimentando desde Santo forte (1999), no qual moradores de Vila Parque da Cidade, comunidade no Rio de Janeiro, narram ao diretor suas vivências espirituais, valendo-se, inclusive, da (re)encenação espontânea de diálogos com diferentes interlocutores (“santos” e espíritos entre eles). O filme finalmente realizado, O fim e o princípio, em torno de conversas com idosos da comunidade paraibana Sítio dos Araçás, guarda – apesar das diferenças – características das duas propostas anteriores (nunca realizadas tal como previstas no papel): em especial, a escolha de uma localidade nordestina e a ênfase na oralidade de velhos sertanejos que atualizam e reinventam, nos diálogos com o diretor, todo um repertório tradicional (composto por palavras, saberes, ditos, expressões, histórias, gestos). Resulta “um dos filmes mais roseanos do cinema brasileiro”, como escreve Mattos muito acertadamente (p.228).
Também merece nota a abordagem detida e cuidadosa de “faces” menos destacadas e discutidas da trajetória de Eduardo Coutinho, como “ficcionista” (no começo da carreira, sobretudo), “repórter” (notadamente quando trabalhou para o programa Globo Repórter, de 1975 a 1984), ou “documentarista social” – na ótima expressão com que Mattos se refere ao período em que o diretor realizou vídeos para movimentos sociais e organizações civis, sobretudo junto ao Cecip (Centro de Criação de Imagem Popular). Mattos nos mostra que a busca pessoal do cineasta, ainda que constrangida pelo formato televisivo ou institucional, teve continuidade nesses períodos, e encontrou em alguns processos específicos ocasiões para refinadas decantações: caso de Theodorico, imperador do sertão (1978), programa dirigido por ele para o Globo Repórter; ou de Boca de Lixo (1993), documentário independente realizado com equipamentos “emprestados” pelo Cecip.
As fases mencionadas acima, entre outras, integram o percurso das “sete faces” (proposição que faz referência ao Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade) que estruturam a publicação: “estudante”, “ficcionista”, “repórter”, “documentarista social”, “cineasta de conversa”, “experimental” e “personagem” são os títulos dos sete capítulos do livro, nessa ordem. Sem que isso desestabilize as muitas qualidades da obra, parece-nos que a estrutura proposta apresenta pequenas contradições. Embora tenha sido criada para fugir de uma “exposição meramente cronológica da trajetória”, nas palavras do autor (p. 27), notaria que há, de um modo geral, coincidência entre a sucessão de “faces” e o percurso do trabalho de Coutinho no tempo. O que acaba produzindo algumas dificuldades, como a localização da retomada de Cabra marcado para morrer na face “repórter” – embora beneficiada de diferentes maneiras por sua atuação como repórter na Globo, como Coutinho sempre reconheceu, parece-nos que a obra enfim realizada (e lançada em 1984) não pode ser inteiramente compreendida sob a chave oferecida por essa “face” (que o digam a espessura histórica do trabalho de montagem ou o “cinema de conversa” que Cabra marcado para morrer, a seu modo, já prefigura).
Por outro lado, quando foge à cronologia, alguns riscos também se colocam – caso da face “experimental” (capítulo 6), que compreende três filmes (Jogo de cena, Moscou e Um dia na vida) realizados antes de As canções e Últimas conversas, os dois últimos filmes de Eduardo Coutinho, incluídos na face anterior, “cineasta de conversa” (capítulo 5). Por um lado, parece-nos difícil não compreender Jogo de cena como parte de um “cinema de conversa” (em torno do qual este filme ensaia de modo experimental e auto-reflexivo, mas ainda assim “conversante”); por outro, o capítulo “cineasta de conversa”, extenso, importante e muito abrangente (já que seu parâmetro é chave definidora da proposta documentária de Coutinho, a ponto de poder abarcar quase toda a sua obra) se encerra com tom conclusivo, ao tratar das últimas gravações de que o cineasta participou – o que provoca certa estranheza, já que dois capítulos (“experimental” e “personagem”) ainda aguardam a nossa leitura.
Como já dito, são questões que a estrutura da publicação nos suscita, mas que não comprometem em nada aquilo que o livro de Carlos Alberto Mattos nos oferece de mais luminoso: a possibilidade de vislumbrarmos no conjunto da produção de Eduardo Coutinho (composta por 12 longa metragens documentais, além de roteiros, alguns filmes de ficção, programas de TV e muitos documentários de média duração em vídeo) um só “processo-cinema”, imbricado ao pensamento do cineasta e em permanente experimentação, reflexão e (re)elaboração. Merecem ainda destaque a rica documentação reunida no livro, incluídas fotografias, fac simile de documentos dos processos criativos, bem como dois úteis “anexos”: uma biofilmografia e uma extensa entrevista que Mattos realizou com o cineasta em 2003.
Cláudia Mesquita
Universidade Federal de Minas Gerais
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Resenha com muita propriedade. Parabéns Ao autor pelo livro. Curioso para para aprecia-lo.
Será uma honra ter a sua leitura, Bertrand.