A evolução dos filmes musicais de Carlos Saura, a começar por Bodas de Sangue (1981), mostra um crescente abandono dos pretextos de dramaturgia para assumir, cada vez mais, a forma de shows. Fados é um dos mais assumidamente teatrais, consistindo de uma série de performances de estúdio que mal disfarçam a repetição de uma mesma fórmula. Repetição dentro do filme e na carreira de Saura, se considerarmos Flamengo, Sevillanas e Iberia.
Telões de vídeo e espelhos multiplicam a imagem de cantores, músicos e dançarinos (a cenografia é assinada pelo próprio Saura). Quase todos os “números” terminam com o mesmo escurecimento da imagem. E, como em Iberia, a última cena é uma “revelação” do estúdio e seus recuos técnicos através de uma grua que se move em direção a um espelho. Mero exercício de metalinguagem pomposo, narcisista e vazio.
Um após outro, desfilam os fados de Cabo Verde e Moçambique, o fado flamengo, o alfacinha, o menor, o batido. A busca de excelência nas performances engessa o espetáculo numa espécie de museu do fado. Mulheres super-maquiadas, cada mecha de cabelo e cada acorde em seu devido lugar. Não sobra um milímetro de cena para qualquer espontaneidade.
Caetano Veloso foi agraciado com o momento mais icônico do filme. Cabe a ele estrelar a homenagem a Amália Rodrigues, cantando Estranha Forma de Vida com sotaque lusitano, em falsete e com batida de Bossa Nova. É ousado e bonito. A Chico Buarque tocou a porção política: canta Fado Tropical à frente de imagens da Revolução de Abril. Nacionalismos à parte, esses dois momentos valem o ingresso para o público brasileiro.
No mais, Saura hiperformaliza o fado num filme de elegância cafona. Nele, as ruas de Alfama aparecem como fantasmas virtuais, sem cheiro e sem vida.
(Texto publicado originalmente no DocBlog, em 29.09.2007)
Acho que há propostas e propostas. Gosto muito da “fase áurea” do Saura (“Prima Angélica”, “Cria Cuervos” e especialmente de “Elisa Vida Minha” que considero o melhor filme de Bergman que não foi feito por Bergman, sem deixar de ser de Saura). Também gosto da trilogia com o Gades. Acho que ele derrapou feio em ficções como “Dispara!” e “Taxi”. Prefiro esses filmes onde a imagem filmada serve ao objeto que trata: a música, as danças, os estilos musicais. Sua parceria com o grande fotógrafo que é o Storaro começa em um ensaio que é “Falmenco” para servir obras obars com mais estofo dramatúrgico, como “Goya em Bordéos” e até mesmo “Tango”. Vejo seus filmes (“Tango” inclusive) como musicais à espanhola, tal como existiram muiscais às Hollywood ou à Jacques Demy, etc, etc, São interessantes exercícios de enquadrament e de movimentos de câmera (que até “dança” com os pares de “Tango”, por exemplo). Tudo costuma ser tão bonito aos olhos e ouvidos que os cacoetes que vc apontou (a grua que ele vem quase sempre exibindo nos finais dos filmes musicais) chegam a me parecer questões menores. Nâo acho que a estética seja tão cafona, ou se é, me parece tão autêntica quanto uma interpretação da espanhola Imperio Argentina (que ele usou em “Dulces Horas”) ou da argentina Libertad Lamarque. Eram cafonas? Mas primavam pela autenticidade derramada (que faz parte dos fados, tangos e exageros de espanholadas). Enfim, dessa vez, melhor para mim que pude até gostar depois de tanto filmes piores no Festival (Ô, safra!) Abraços
Os exercícios formalistas eram muito interessantes nos anos 80, mas à força de repetição se tornaram clichês de estilo, maneirismos vazios. Não acho que isso sejam “questões menores” porque é justamente disso que vivem os filmes-shows do Saura. O isolamento das performances nessas bolhas cenográficas, alheadas de toda a vida que as alimenta, me traz um gosto de esterilidade, ostentação, engessamento museográfico. Quanto a Elisa Vida Mia, acho mais resnaisiano que bergmaniano.
Ele também não fez “Tango”, com a bela Mia Maestro?
Fez sim, há 11 anos, mas ali ainda ensaiava um esboço de dramaturgia, agora abandonado. Aliás, abandonado para o bem, porque “Tangos” era bem fraco nesse aspecto.