Chega finalmente ao Rio nesta sexta um dos melhores documentários do cinema brasileiro recente. Desde as primeiras exibições em festivais e pré-estreias, e na primeira semana de exibição em S. Paulo, Santos e Belo Horizonte, o filme de Luciana Burlamaqui tem levantado vários tipos de questões sobre os conflitos sociais brasileiros e a consciência das pessoas a respeito deles.
É curioso que Luciana não tenha feito muitas perguntas aos personagens de Entre a Luz e a Sombra. Preferiu o método da observação, colhendo cenas do dia-a-dia e de shows, desabafos e momentos de grande intimidade. As perguntas mais cruciais são feitas silenciosamente ao espectador que convive com Sophia, Marcos, Christian e o juiz Octávio de Barros Filho. Eu, por exemplo, me senti indagado sobre várias coisas:
– Por que uma atriz promissora como Sophia Bisilliat decide largar a carreira para, com o apoio da mãe, a célebre fotógrafa Maureen Bisilliat, dedicar-se a caçar e ajudar talentos no presídio do Carandiru?
– Qual o limite entre a solidariedade e a fascinação, a partir do momento em que Sophia se encanta pelo rapper-presidiário Marcos/Dexter e se torna, mais que agente, sua companheira?
– O que existe de pessoal (íntimo) na atitude social dos que se empenham na regeneração de criminosos?
– Até que ponto os rumos do romance Dexter-Sophia influenciaram a posterior revisão que ela fez dos seus conceitos sobre a regeneração?
– Qual o lugar em nosso sistema penal para um juiz como Octávio, que precisa infringir a lei para não alimentar o círculo vicioso da violência, a grande sombra devoradora de que fala o título do filme?
– Que razões, além do nefasto determinismo social, levaram Dexter e seu parceiro Christian/Afro X a se distanciarem em matéria de comportamento e ideologia?
– Como distinguir as mensagens de paz e as declarações de guerra no rap furioso do 509-E? E como a mídia deve se comportar em relação a essa ambiguidade?
Enfim, são muitas e complexas as questões colocadas por este doc profundamente inquisidor. E o melhor é que não existe nenhuma retórica na forma como isso chega até nós. O grande trunfo de Luciana Burlamaqui é trazer essas questões no bojo mesmo da experiência que acompanhou com sua câmera solitária ao longo de sete anos.
Seguindo o percurso vivencial e emocional dos personagens, Entre a Luz e a Sombra faz a crônica de uma série de eventos públicos e privados no período entre 2000 e 2007. Presencia as saídas da dupla para os shows, gravações e premiações. Testemunha o surgimento do PCC e o dia do Salve Geral. Narra com distanciamento o massacre do Carandiru. Cobre os impasses na consciência dos personagens envolvidos com a ação solidária aos detidos. Chega às mais recentes atividades de Sophia e Maureen Bisilliat em seu “território híbrido”, uma zona cinzenta entre a sombra e a luz.
Não me recordo de nenhum filme – fic ou doc – que exponha a atual crise social brasileira com tanta potência e visceralidade. E não é bom só para debater. Na riqueza de sua dramaturgia, eis um magnífico filme de gênero, só que extraído da mais pura realidade.
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