Na minha resenha de O Homem que Engarrafava Nuvens (leia aqui), fiz rápida menção ao fato de o filme não destacar devidamente as letras, o que teria sido a contribuição principal de Humberto Teixeira nas suas parcerias com Luiz Gonzaga. Ao ler isso, meu amigo Jairo Severiano, um dos maiores pesquisadores da MPB, ponderou comigo que Humberto é responsável também pela música de muitos baiões de sucesso da dupla. Não haveria, portanto, uma divisão muito rígida entre músico e letrista.
Jairo possui uma cópia do longo depoimento de Humberto Teixeira ao pesquisador cearense Nirez, dado em 1977 para o Museu Cearense da Comunicação. Vários trechos desse depoimento estão no áudio do documentário de Lírio Ferreira. Para ilustrar sua colocação, Jairo transcreveu uma pequena passagem que não se ouve no filme, onde Humberto esclarece a natureza da parceria. Veja aí:
“Principalmente depois do processo de mitificação de Luiz Gonzaga, a redescoberta que a onda baiana fez em torno de Luiz Gonzaga, muita gente querendo ser generosa diz que eu sou o letrista das músicas de Luiz Gonzaga. Não existe nada disso. Muitas delas são minhas integralmente, letra, música, tudo… como outras são do Luiz. Na nossa parceria, eu costumo dizer, não sei onde começa o poeta e onde termina o músico. É uma parceria indestrutível, muito amiga, muito fraterna, de maneira que o que não foi feito por ele eu considero feito e vice-versa. A recíproca é absolutamente verdadeira. (…) Eu nunca me importei muito com esse processo de eu ter ficado atrás do reposteiro.”
Jairo Severiano esclarece, inicialmente, que a tal “onda baiana” citada por Humberto refere-se à “conhecida onda de elogios desencadeada por Caetano e Gil em louvor ao sanfoneiro e que resultou em sua ressurreição profissional”.
Por fim, Jairo me passou o seguinte comentário, de sua lavra:
“Além de sua importância, dividida com Teixeira, no processo de estilização da música nordestina, Luiz Gonzaga foi o grande divulgador do gênero. A presença intensa do cantor-sanfoneiro nos palcos, no rádio e no disco, com sua competência, sua simpatia, seu carisma, fez dele uma das maiores figuras de nossa música popular no século XX. Sem Luiz Gonzaga o baião jamais teria chegado ao sucesso alcançado. Tudo isso está reconhecido e exaltado em outro trecho do depoimento de Humberto Teixeira”.
Jairo Severiano é autor dos livros Yes, Nós Temos Braguinha (Funarte/Martins Fontes, 1987), A Canção no Tempo – 85 Anos de Músicas Brasileiras (2 volumes, co-autoria de Zuza Homem de Mello, Ed. 34, 1997) e o definitivo Uma História da Música Popular Brasileira (Ed. 34, 2008)
Não conheço tanto assim a obra musical de Humberto Teixeira fora de suas parcerias com Luiz Gonzaga, mas o filme destaca pelo menos um enorme sucesso de Humberto solo que foi “Kalu”, gravado originalmente por Dalva de Oliveira em Londres. A cantora ainda gravou, assinado apenas por Humberto, um outro baião, “Sem Ele”, também na Inglaterra com estranho sotaque do coro (britânico) que repete o refrão de modo que soa “sáin êl, sáin êl, a vida é muit’rrruim”. O sotaque é ainda piorrrr ! Mas a gravação (quase involuntariamente cômica) também tocou muito nas estações de rádio (como tudo que a Dalva gravava na época desde que aludisse à perda de uma relação afetiva – o que não era o caso de “Kalu” com sua repercussão estrondosa a ponto de virar nome de um então novo picolé da Kibon feito de suco de abacaxi).
Sobre o filme (excelente): pena que não nomearam a Silvana Mangano, então com 21 anos, que aparece cantando o que ficou conhecidíssimo como “Baião de Ana”, do filme “Ana”, de Alberto Lattuada, de 1951. O cinema italiano parece ter adorado o baião. Em “Noites Brancas” do Visconti, já de 1957, em uma cena de casa noturna também havia uma música brasileira de estilo nordertisno, mas não recordo qual era.
Sem esquecer Vanja Orico cantando “Meu Limão, Meu Limoeiro” em “Mulheres e Luzes”, de Fellini e do mesmo Lattuada, em 1950.
EStá certo resgatar a memória do grandioso Humberto Teixeira., Iso é louvável, mas não se deve colocá-lo em posição de vítima, pq não é verdadeiro: seu valor foi reconhecido em vida e os depoimentos que ele deu demonstram não haver rivalidade, nem apropriação indevida de obra entre ele e o parceiro Luiz Gonzaga. Não devemos permitir tentativas de manipulação a partir da reprodução do modelo usado no resgate de Cartola, Nelson Cavaquinho, e outros. Reconhecidamente geniais, esses autores/cantores passaram a representar sozinhos uma época magistral da cultura e da música popular brasileira. Isso tbem não é justo com outros talentosos, alguns reconhecidos pelo público e a indústria, outros não. O reconhecimento deles não deve obscurecer o reconhecimento do valor de tantos outros compositores e autores de talento e geniliadade. Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira não colocaram em disputa o que agora parece que alguns setores desejam que seja feito. Isso é muito feio/aético e depõe contra a memória e a obra de um gênio e de um cavalheiro sensato e equilibrado como foi Humberto Teixeira.