Não é preciso ser um admirador de Paulo Francis para gostar de Caro Francis, o documentário de Nelson Hoineff sobre um de seus maiores amigos durante 19 anos. Eu mesmo rejeitava o elitismo que parecia atravessar a personalidade inteira do jornalista – da política à cultura, do humor à baixa estima que destilava pelas coisas brasileiras. Francis era republicano, antipopular, racista, sexista, talvez um tanto misantropo – ou seja, tudo o que pessoalmente abomino. No entanto, apreciei este perfil traçado com honestidade pelos seus próprios amigos e ex-colegas de trabalho.
Não há no filme a presença de qualquer desafeto explícito. Os depoimentos mais agudos contra Francis vêm do ex-ombudsman da Folha de São Paulo, Caio Túlio Costa, e do ex-presidente da Petrobras, Joel Rennó, com os quais ele teve conflitos graves e são duramente atacados por um correligionário de ideologia semelhante e língua igualmente solta como Diogo Mainardi. Mas a veia polemista e meio clownesca de Francis aflora mesmo nas lembranças dos que o admiravam e com ele conviveram ativamente. Isso faz do doc um passeio delicioso pelo reino da opinião desabrida, muitas vezes irresponsável, do autor do Diário da Corte. O filme é quase um rap de frases feitas e citações jocosas do próprio Francis, mais as tentativas dos amigos de definir o seu caráter ciclotímico e o brilho grosso de sua retórica. A maior ironia, sem dúvida, é ver Paulo Maluf elogiar sua sinceridade.
As histórias se acumulam num raro insight pelos bastidores do alto jornalismo brasileiro. Como crítico de teatro, Francis foi tão acerbo que suscitou reações extremadas, como um soco de Adolfo Celi e uma cusparada de Paulo Autran por conta de um artigo especialmente agressivo contra Tonia Carrero). Foi demitido de um jornal de Pernambuco e saiu da Folha de São Paulo por pressões de leitores. Seus colegas de Pasquim, TV Globo, Manhattan Connection e outros veículos levantam episódios impagáveis, que provocam riso e perplexidade.
O melhor de tudo é que Hoineff dispôs de um material de arquivo preciso para ilustrar cada um desses momentos, mostrando muitas vezes a frase ou a palavra exata que detonou cada episódio. Uma série de take-outs complementam a construção de um personagem realmente singular na televisão brasileira. Não faltam observações sobre o relativo fracasso de Francis na literatura, nem a respeito de suas idiossincrasias pessoais. O consumo de álcool, drogas, Wagner e Doris Day também é passado em revista, assim como sua paixão pelos gatos. O clímax melodramático do filme, aliás, não é a morte do personagem, em meio ao stress de um processo movido pela Petrobras e a displicência de seu médico pessoal, mas a leitura de uma carta de sua mulher, Sonia Nolasco, a Nelson, relatando a doença da gata Alzira.
Pode não ter sido essa a intenção, mas para mim soou como mais uma fina ironia num filme que tenta entender em profundidade o temperamento de seu personagem. E sabe se utilizar do viés individual para descortinar as relações intensas, mas espinhosas, entre grandes egos do meio jornalístico.
(Resenha publicada originalmente no DocBlog / Globo Online, em dezembro de 2008)
Gostei muito do filme, embora não gostasse da persona do Francis.
Carlos,
Coincidência. Reassisti a esse documentário anteontem, motivado por uma notícia sensacional pros admiradores de Paulo Francis. O jornalista Geneton Moraes Neto está preparando um livro sobre ele, a ser lançado ainda este ano. Esfrego as mãos de expectativa. Abs.