Apontamentos sobre os ‘Appunti’ de Pasolini

O Instituto Moreira Salles exibe nos dias 14, 19 e 27 o raro filme Anotações para Filmar Orestes na África (Appunti per un’Orestiade Africana), de Pier Paolo Pasolini. Abaixo, o texto que escrevi para o folder mensal do IMS:    

1.

 O formato de “Apontamentos”, “Anotações” ou simplesmente “Notas” costuma ser adotado por cineastas de várias latitudes como uma forma de libertação. De alguma maneira, ele isenta o autor de cumprir exigências narrativas mais constituídas, seja da dramaturgia ficcional, seja da retórica documental. As “notas” cinematográficas permitem uma aproximação maior com o formato do ensaio, em que afirmações definitivas são substituídas por perguntas, ideias em andamento e raciocínios não necessariamente concludentes. Como este texto aqui, que não pretende dar conta de tudo o que Pier Paolo Pasolini mostra e diz em Appunti per uma Orestiade Africana.

Por seu caráter assumidamente fragmentário, as “anotações” admitem a convivência de materiais muito diversos, assim como câmbios bruscos de enunciação e todo tipo de variações em torno de um ou mais temas. “Um estilo sem estilo”, como diz Pasolini.

Pertencem a essa estirpe filmes de Fellini (o autorreflexivo Anotações de um Diretor), Wim Wenders (o documentário ensaístico Notas sobre Roupas e Cidades) e Jonas Mekas (o autobiográfico Diaries, Notes and Sketches), para citar apenas alguns mais célebres e que afirmam sua condição já no título. O próprio Pasolini exercitou esse “estilo sem estilo” em pelo menos dois outros filmes, sempre como suposto estudo para um longa-metragem que pretendia realizar. Em 1967, arrematou seus Appunti per un Film sull’India, manifesto da intenção de adaptar para a Índia contemporânea o conto moral de um marajá que sacrificava seu corpo para salvar um tigre. No ano de 1970, além desta Orestíade, ele faria Appunti per un Romanzo sull’Immondezza, filme sobre uma greve de garis. Podemos ainda incluir no mesmo grupo o Sopralluoghi in Palestina per il Vangelo Secondo Matteo, documentário sobre a busca de locações para o longa referido.

Mesmo se o suposto filme futuro não se realizou (como foram os casos da Orestíade africana e do filme sobre a Índia), esses insights no método de criação de PPP ajudam a iluminar outros projetos semelhantes que acabariam concretizados. Através deles, ficamos compreendendo melhor o processo intelectual e as justificativas históricas e políticas de filmes como Medeia, Édipo Rei e As Mil e Uma Noites, outras transposições de grandes textos clássicos para cenários do Terceiro Mundo.   

2.

Na Orestíade, Pasolini encarrega-se, já no início do filme, de resumir a trama da trilogia de Ésquilo que pretende transportar para cidades e campos de Uganda e Tanzânia. A narração soa didática – e isso é justificado pouco depois, quando o filme salta da África para uma sala de aula da Universidade de Roma, onde Pasolini agora dirige perguntas a um grupo de estudantes de origem africana. Logo vem à lembrança o expediente usado por Jean Rouch e Edgar Morin em Crônica de um Verão, com a diferença de que a plateia não se compõe de personagens do próprio filme, mas de jovens apenas remotamente ligados ao tema. Vale lembrar também que PPP, em Comizi d’Amore (1965), foi um dos mais devotados cultores do cinéma verité de matriz morin-rouchiana.

Os appunti pasolinianos são ensaios marcados pelo sentido de busca. São provisórios por natureza, já que se destinariam a um projeto “maior” que estaria por vir. A narração é feita pelo diretor, com sua voz fina e doce de padre italiano. O texto é um fluxo de ideias em total intimidade com as imagens editadas, sendo difícil definir onde escritura ou edição se antecederam. Esse corpus monolítico de ideias-imagens, porém, a todo momento abre espaço para a dúvida e a indagação. Pasolini interroga a si mesmo e ao espectador, quando não a outros personagens que vai incorporando.

Duas pontes são estendidas na operação proposta pelo filme. Uma delas, entre a Grécia antiga e a África moderna. Na tragédia de Ésquilo, Orestes mata a mãe, Clitemnestra, em vingança pela morte do pai, Agamenon, e é perseguido pelas Fúrias (as deusas Erínias). A deusa Atena intervém para que Orestes seja julgado não pelas Erínias, mas por mortais como ele. Assim o teatro grego dramatizou o surgimento da democracia – os cidadãos assumindo o poder de conduzir seu destino. Pasolini vê aí um paralelo com os movimentos de independência de várias nações africanas nos anos 1960, quando o continente teria “descoberto” a democracia.

A outra ponte liga o subproletariado dos subúrbios de Roma (retratado em vários filmes do início da carreira de PPP) e os camponeses e operários africanos que então se adaptavam como podiam aos tempos pós-coloniais, uns através do neocapitalismo, outros de um protossocialismo igualmente massificado. Todos se equivalem ao olhar do diretor, que extravasa simpatia pelos rostos populares e discreta comiseração pelas duras condições de vida enfrentadas.        

A tese principal desses Appunti é que a África estava em vias de se abrir à coexistência do arcaico e do contemporâneo, do irracional (o mágico, a ritualização do cotidiano) e do racional (o consumo, a industrialização, a democracia participativa). Isso significaria, no plano mitológico, a transformação das vingativas Erínias em Eumênides, deusas benfazejas e guardiãs da justiça, conforme Ésquilo.     

3.

Para fazer sua adaptação, Pasolini adota um esquema fortemente representacional. A câmera vasculha aldeias, cidades, mercados, fábricas e escolas, em busca de rostos e locações que correspondam a sua ideia de uma Orestíade Africana: homens e mulheres que possam eventualmente fazer os papéis de Agamenon, Orestes, Clitemnestra e demais personagens da tragédia. As Fúrias seriam interpretadas por forças da natureza, como feras e o vento sobre as árvores. Kampala, a capital ugandense, se prestaria a representar a cidade de Atenas, enquanto a moderna Universidade de Dar-es-Salaam (então capital da Tanzânia) seria o Templo de Apolo. Dramáticas cenas de arquivo da guerra de Biafra poderiam fazer as vezes da guerra de Troia. Por sua vez, algumas filmagens de alegres danças e ritos tribais cairiam bem como metáforas da conversão de Erínias em Eumênides.

Os Appunti incluem algumas sequências já dramatizadas como pequenos ensaios do que seria o filme definitivo. Nelas fica clara a vinculação poética que Pasolini faz das feições e posturas dos africanos com os ideais de uma personificação do teatro grego. Para seus atores não estava reservada a missão de atuar, no sentido comum de transformar-se no personagem. Ele queria encontrar no homem africano idealizado o mesmo substrato de nobreza ou tragicidade dos personagens gregos.

Embora com intenções muito diversas, o dispositivo se assemelha ao que Vik Muniz utilizou para sua famosa série a partir do aterro sanitário de Gramacho. Como vemos no documentário Lixo Extraordinário, de Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley, o artista plástico saiu em campo (na “democracia do lixo”)  à procura de rostos e corpos que pudessem ocupar o lugar de imagens clássicas da arte e da mitologia universais. A ação de Vik Muniz, contudo, nada tem da idealização nem da identificação profunda que Pasolini perseguia. Serve, isso sim, a um projeto de afirmação comunitária e “elevação” do humilde à esfera do ilustre.      

Na Orestíade de Pasolini, a estratégia de representação metafórica chega a um ponto de quase ruptura de sentido no longo intermezzo musical filmado em estúdio. O trio de Gato Barbieri e dois cantores afro-americanos improvisam o trecho da profecia de Cassandra em clima de free jazz cacofônico e furioso. PPP queria dizer com isso que os “subproletários negros da América” poderiam assumir a liderança dos movimentos revolucionários do Terceiro Mundo.

Para além de todo o wishful thinking, percebe-se aí a indecisão de Pasolini entre, de um lado, aceitar criticamente as novas formas de democracia capitalista ou socialista que tentavam se estabelecer na África e, de outro, renovar esperanças numa saída revolucionária que já não se mostrava viável, na África ou na América Latina. O trágico se instaura na própria consciência do cineasta, sob a forma de uma reflexão política que conclui com uma vaga profissão de fé na conciliação de contrários. A passagem da África de um estado selvagem e mágico para uma civilização racional e produtivamente controlada desperta sentimentos contraditórios no intelectual marxista e fascinado pelo primitivismo.       

4.

Quase todos os anos, nas décadas de 1960 e 70, Pasolini passou as férias de Natal em viagens pela África, Ásia e Oriente Médio, algumas delas em companhia de Alberto Moravia e Elsa Morante. O contato com o Terceiro Mundo o revitalizava, apesar do desgosto com os caminhos de alienação capitalista que via tomarem várias nações. Em países do Terceiro Mundo filmou, total ou parcialmente, Medeia, As Mil e uma Noites, Édipo Rei e O Evangelho Segundo São Mateus, além de curtas e appunti.   

Mais que estudos para filmes futuros, os appunti pasolinianos eram na verdade uma licença para libertar-se das fórmulas convencionais. Eles deveriam integrar um projeto mais amplo e ambicioso, chamado Appunti per un Poema sul Terzo Mondo. Redigido em 1968, o projeto teria módulos dedicados à Índia, à África, ao Iêmen, à América do Sul e aos guetos afro-americanos.

Na edificação desse conjunto de reflexões, Pasolini deixou transparecer uma visão etnocêntrica e primitivista dos dilemas dos países mais pobres do planeta. A atitude de sua câmera chega a parecer desrespeitosa quando “persegue” pessoas que demonstram não querer ser filmadas. A falta de som direto nas filmagens da África eliminou a possibilidade de dar voz aos africanos, restando-lhes o papel de objetos de desejo cultural (e sexual, como afirmou a amiga escritora Dacia Maraini, que o acompanhou na viagem). O modo às vezes generalizante e redutor como se referia ao continente é criticado por um dos estudantes da Universidade de Roma, que o acusa de não considerar as enormes diferenças entre os países e assegura que “África não significa nada”.

Aqui uma ressalva se impõe. Se incluiu essa cena na montagem final é porque Pasolini sabia muito bem estar caminhando em campo minado. O filme evidencia, assim, as suas próprias limitações como instrumento de representação e privilegia o aspecto mais rico de discussão e ensaio. Nesse como em seus outros filmes, e ainda em sua própria vida, Pier Paolo Pasolini expressou a crise da consciência moderna.  

5.  

Para concluir, um trecho intrigante dos escritos preparatórios de Pasolini sobre sua Orestíade Africana, que prometia desdobramentos ainda mais radicais para o projeto:

“… pensemos numa figura como a de Cassandra, que antevê, e mesmo vê fisicamente sua própria morte – que vai ocorrer muito tempo depois na casa do Rei – e a descreve. Esse ‘solo’ de Cassandra podia ser completamente cantado, naquela forma de transe que costuma dominar os negros quando cantam.

(…)

Como vocês podem ver, o filme iria fazer parte de um gênero já familiar ao público – o musical. Só que, nesse caso, teríamos um musical trágico – a tragédia mística tão típica do canto negro.

Os grandes personagens da Tragédia – Agamenon, Clitemnestra, Orestes – poderiam ser interpretados por grandes atores negros americanos; ou mesmo por negros famosos que não sejam atores; por exemplo, alguns boxeadores inesquecíveis, cantores ou dançarinos que se tornaram lendários em todo o mundo”. 

Aí está. Os apontamentos são um filme que corre tanto na tela quanto no desejo do realizador. Um campo livre para a imaginação.         

Este texto foi publicado também no site do IMS

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s