Não existe um grande espaço para heróis no cinema brasileiro de ficção, historicamente dominado por personagens em crise, criaturas alegóricas, vítimas e algozes, e recentemente povoado por criaturas esvaziadas de subjetividade e projeto. Nos últimos anos, essa lacuna vem sendo preenchida por “heróis” de documentários. Figuras afirmativas sobretudo na cultura e no pensamento formam o panteão do cinema brasileiro atual. Em sua esmagadora maioria, são retratadas pelo viés do elogio, da cordialidade e do afeto. As exceções são poucas e radiantes.
(Artigo publicado na revista Filme Cultura nº 51, em julho de 2010)
Onde estão os heróis no cinema brasileiro? A pergunta pode soar despropositada para uma cinematografia que não ostenta a tradição da figura heroica como fomentadora de dramaturgia. Se excluirmos os heróis históricos – Tiradentes, Ganga Zumba, Zumbi dos Palmares – e os anti-heróis marginais – Superoutro (Edgar Navarro, 1989), Meteorango Kid – herói intergaláctico (André Luiz Oliveira, 1969), O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) –, restam poucas incidências de personagens dessa natureza.
Seja em função das dificuldades em se criar uma estrutura industrial que solidificasse o cinema de puro entretenimento, seja por alguma atávica retração no culto ao herói na cultura brasileira, o fato é que em nossa filmografia predominam as gentes comuns, os personagens em crise, as criaturas alegóricas, as vítimas e os algozes.
Esta característica se faz notar no cinema de ficção recente, quando três candidatos a heróis de blockbuster sofreram relativos naufrágios nas bilheterias. Besouro (João Daniel Tikhomiroff, 2009), Lula, o filho do Brasil (Fábio Barreto, 2010) e Villa-Lobos, uma vida de paixão (Zelito Viana, 2000) propunham criaturas maiores que a vida, capazes de projetar uma aura mítica para além de sua individualidade e condensar as aspirações de uma raça, uma classe, uma nação. Afora esses dois exemplos, impõem-se as mães heroicas de Sergio Rezende (Zuzu Angel, 2006, e Salve geral, 2009), às quais podem-se juntar a proto-mãe de Verônica (Maurício Farias, 2009), a Dona Lindu, mãe de Lula, e o pai de Dois filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005). Cabem ainda nessa lista a heroína infantil da série Tainá e os “heróis” da nova onda espírita, capitaneados por Bezerra de Menezes (Glauber Filho e Joe Pimentel, 2008) e Chico Xavier (Daniel Filho, 2010).
Mas o personagem ficcional brasileiro contemporâneo por excelência é aquele esvaziado de subjetividade e projeto. Não é agente de seu destino nem da História, mas alguém meramente atravessado pelos fatos, incapaz de romper o casulo da irrealização. Leonardo Medeiros (Não por acaso, 2007, Feliz Natal, 2008, Budapeste e Insolação, 2009) e Júlio Andrade (Cão sem dono, 2007, Hotel Atlântico, 2009) tornaram-se atores-símbolo dessa dramaturgia da deambulação e da apatia. Menos que homens comuns, seus personagens nesses filmes espelham a incapacidade – se não a recusa – do indivíduo para alçar-se acima das contingências sociais, familiares e culturais que impedem a eclosão do extraordinário.
Se sairmos, portanto, à procura dos nossos heróis cinematográficos, será mais proveitoso tomar a senda dos documentários. A constatação me chegou claramente diante de uma palestra e um texto de José Carlos Avellar no catálogo da 13ª Mostra de Cinema de Tiradentes. A partir daquela sugestão, comecei a verificar como o cinema de não-ficção vem suprindo essa relativa ausência de personalidades (não mais propriamente personagens) afirmativas, criadoras de contexto, inspiradoras de atitudes ou modelos de comportamento.
O império da cordialidade
Os documentários biográficos, enfocando personalidades da cultura, da política e dos esportes, têm sido a parcela mais difundida da produção documental brasileira. A pesquisadora Helena Sroulevich identificou como biografias 50 dos 177 documentários lançados no Brasil entre 1995 e 2009, ou seja quase um terço do total. De um lado, como afirma Avellar em seu texto, “são filmes que respondem às dificuldades de reunir recursos capazes de cobrir os custos de produção e distribuição de um projeto de ficção”. De outro, beneficiam-se de uma certa praticidade no uso da pesquisa biográfica como argumento e eixo narrativo já dados. A cinebiografia documental evoluiu como subgênero, apesar de majoritariamente composta por perfis positivantes ou mesmo elegíacos de seus personagens.
Há razões jurídicas, antropológicas e afetivas para essa abundância de celebraçõesem digital. Aconstrução de personagens em documentários mantém ligação estreita com o tipo de relação existente entre documentaristas e documentados. Para começar, todo projeto desse tipo envolve uma delicada negociação com os detentores dos direitos de imagem, sejam eles os próprios personagens, sejam seus herdeiros ou familiares. A opção de contemplar aspectos mais controvertidos de uma pessoa é frequentemente barrada no nascedouro. A Constituição Brasileira de 1988 protege como “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (artigo 5º, inciso X). Para o advogado Dario Correa, especializado em direitos de imagem, “a lei é boa, embora o seu cumprimento no Brasil seja difícil e lento”.
Face ao conflito jurídico entre os direitos de imagem da pessoa e o direito à liberdade de expressão do artista, os projetos biográficos geralmente se acomodam na instância dos acordos prévios, evitando aprofundar-se em áreas mais sensíveis. Um contencioso clássico é o do curta Di (Glauber Rocha, 1977), interditado judicialmente pela família de Di Cavalcanti, que considerou ofensiva a abordagem dos funerais do pintor. Veto familiar menos formalizado atingiu as filmagens do velório do próprio Glauber, que Silvio Tendler só foi usar 23 anos depois, em Glauber, o filme – labirinto do Brasil (2004).
Na maior parte das vezes, entretanto, prevalece a negociação prévia, e a esfera jurídica não chega a ser envolvida. A proverbial cordialidade brasileira encarrega-se de limpar arestas e, mais que isso, direcionar os interesses dos documentaristas para o campo da admiração e do tributo. É profunda a reverência que moveu, por exemplo, Fabiano Maciel na realização de Oscar Niemeyer: a vida é um sopro (2007) ou Bebeto Abrantes com Recife/Sevilha: João Cabral de Melo Neto (2003), ambos os diretores agradecidos pelo privilégio de terem gravado longas entrevistas que deram aos filmes suas espinhas dorsais. Em casos como esses, para além da admiração pessoal, impera a consciência de se estar contribuindo para a formação de um acervo do patrimônio cultural da nação, tomado como objeto mais de respeito que de investigação.
Sentimentos de filiação cultural aproximaram outros cineastas de figuras célebres em seus meios ou regiões. É o que engendrou os perfis de Ariano Suassuna pelo paraibano Marcus Vilar (O senhor do castelo, 2007), Domingos Oliveira pela atriz Maria Ribeiro (Domingos, 2009), Maria Clara Machado pela ex-aluna Creuza Gravina (O Tablado e Maria Clara Machado, 2007) e o Samba Riachão (2001) do baiano Jorge Alfredo Guimarães. Existe aí uma relação de reconhecimento que supera qualquer intenção de revolver aspectos polêmicos da vida dos biografados. A bela evocação de Mário Peixoto realizada por Sérgio Machado em Onde a terra acaba (2002) não se dispôs a ultrapassar o limite da reverência e tocar na questão da homossexualidade, tão importante para se compreender o criador de Limite.
Alguns projetos se deixam orientar por uma espécie de identificação entre documentarista e personagem. O poeta, cineasta e surfista Pedro Cezar encontrou em Manoel de Barros (Só 10% é mentira, 2008) não só um mestre como um estímulo à produção de imagens poéticas. Em Fábio fabuloso (2004), o mesmo Pedro Cezar juntou-se ao também surfista Ricardo Bocão e ao produtor Antonio Ricardo para dirigir a mais criativa biografia de um esportista já feita entre nós. Não é de pouca importância a identificação assumida por João Moreira Salles em relação ao pianista Nelson Freire, que documentou em 2003 sublinhando as características, alegadamente comuns, da discrição e do recato.
Etnografias do afeto
Quando criou seu filme sobre o amigo Paulo Cesar Saraceni, Ricardo Miranda estampou a relação já no título. A etnografia da amizade (2007) é ao mesmo tempo o cumprimento de um amigo e o elogio da emoção e da afetividade como combustíveis da criação de Saraceni. Pacto semelhante foi efetivado entre a dupla Roberto Berliner & Pedro Bronz e o músico Herbert Vianna para a concretização de Herbert de perto (2006). Berliner filmou Herbert por muitos anos, e o filme incorpora traços dessa longa convivência. Por sua vez, Nelson Hoineff exprimiu já no título de Caro Francis (2008) o caráter amistoso de seu perfil de Paulo Francis – muito embora nem os amigos o livrem da controvérsia.
Mais expressivo ainda de uma relação de amizade e parceria é Pan-cinema permanente (2008), abraço póstumo de Carlos Naderem Waly Salomão. Nesse retrato incomum de um artista, construído exclusivamente por operações poéticas baseadas no afeto, o personagem é apresentado não por seus dados, mas por seu tom. Waly aparece através da temperatura de sua presença no mundo, tal como flagrada nos vídeos do amigo.
A fraternidade política entre João Batista de Andrade e o jornalista Vladimir Herzog é exposta por Andrade em cada fotograma de Vlado – 30 anos depois (2005). A fraternidade cinematográfica uniu o diretor Roman Stulbach e uma equipe de amigos comuns para fazer Suíte Bahia (2007), retrato carinhoso do cineasta baiano Agnaldo ‘Siri’ Azevedo, falecido em 1997. Outro cortejo de amigos e admiradores se estendeu à volta da memória de Vinicius de Moraes no documentário que, bem-sucedido junto ao público, ‘puxou’ a onda de cinebiografias musicais. Mas Vinicius (2005) contou com um elemento a mais nessa equação de afetividade dos documentários biográficos: o diretor Miguel Faria Jr. é um ex-genro do poetinha.
O elo de família é frequente motivador de cinebiografias documentais, especialmente quando se referem a pessoas já falecidas. O privilégio no acesso a materiais, o conhecimento de detalhes íntimos e a negociação doméstica dos termos de exposição são fatores que facilitam a empreitada. Conta-se aí também o desejo de eternizar em película um ente querido, projetando-o num certo panteão da memória cinematográfica.
Gracindo Júnior e Marina Person construíram perfis de seus pais, respectivamente Paulo Gracindo – o bem amado (2008) e o cineasta Luís Sergio Person (Person, 2008). Para Marina, o filme funcionou como uma pesquisa sentimental sobre um pai que pouco conhecera. Razão semelhante à que conduziu Denise Dumont a rastrear a história de seu pai, o compositor Humberto Teixeira, em O homem que engarrafava nuvens (2009). O pai reconstruído como um homem que conserva áreas nebulosas é um dos trunfos a destacar esse filme de Lírio Ferreira da média das celebrações filiais.
Três irmãos de sangue (Ângela Patrícia Reiniger, 2006), rememoração emocionada da história dos irmãos Betinho, Henfil e Chico Mário, foi um projeto idealizado pelo músico Marcos de Souza, filho de Chico. A atriz Ana Maria Magalhães levou para as telas a vida e a obra de seu tio, o arquiteto Afonso Eduardo Reidy (Reidy – a construção da utopia, 2008).
Filmes realizados com intensa participação autoral dos familiares do biografado foram Raízes do Brasil (Nelson Pereira dos Santos, 2003) e Programa Casé – o que a gente não inventa, não existe (Estevão Ciavatta, 2010). O primeiro teve como corroteirista Miúcha, filha de Sérgio Buarque de Holanda. O segundo foi dirigido pelo marido de Regina Casé, neta do radialista Ademar Casé. Essas abordagens ‘de dentro’ muitas vezes geram um tipo de documentário que parece apenas alargar o espectro do filme de família. Fazem o personagem flutuar numa nuvem de gratidão e carinho. Em troca da higienização, oferecem ao espectador o prazer quase voyeurístico de participar da intimidade daquele grupo.
Santiago (2006), de João Moreira Salles, criou uma variação original do doc-família a partir da figura do mordomo, cuja história permitiu abrir frestas para a privacidade dos Moreira Salles. Estava em foco ali justamente a relação entre documentarista e personagem, objeto principal do filme no fim das contas. Outros documentários recentes também problematizaram de alguma maneira o lugar do personagem central. O tempo e o lugar (2008), de Eduardo Escorel, deixou as contradições aflorarem no discurso e nas memórias de um ativista nordestino. Em Encontro com Milton Santos (2006), Silvio Tendler fez uma ‘biografia’ das ideias do geógrafo para alavancar um libelo contra os efeitos nocivos da globalização no Terceiro Mundo. Por sua vez, Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, em Cartola: música para os olhos (2006), usaram a trajetória do sambista para tentar construir uma visão transversal das origens do samba e da história política do país no século passado.
Em busca de outras faces
Nessa paisagem de filmes um pouco mais, um pouco menos comprometidos com a exaltação do personagem, cabe mencionar algumas exceções. Na maioria delas, a notoriedade peculiar do biografado encaminhava naturalmente o documentário para a seara da polêmica. É o caso de Simonal – ninguém sabe o duro que dei (Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, 2009), trabalho habilidoso na concatenação de um resgate cultural com uma controvérsia política (leia mais na matéria A vida depois do doc, nesta edição).
Há uma certa disposição investigativa convivendo com o afeto nos documentários de Patrícia Pillar (Waldick, sempre no meu coração, 2008), Vladimir Carvalho (O engenho de Zé Lins, 2007), Paulo Henrique Fontenelle (Loki – Arnaldo Batista, 2008) e Toni Venturi (Rita Cadillac – a lady do povo, 2008), além do já citado O homem que engarrafava nuvens. Em todos eles, a revelação de ambiguidades e informações delicadas sobre a vida dos personagens denota a intenção de ir além da face mais conhecida e dos clichês estabelecidos sobre cada um. Ou pelo menos tatear uma forma menos sanitizada de apresentá-los.
Patricia vai aos limites da invasão de privacidade para aprofundar o retrato humano de Waldick Soriano, até porque o seu universo musical bebia mesmo nas histórias de egos partidos e amores fracassados. O temperamento ciclotímico e um grande trauma familiar na vida de José Lins do Rêgo ancoram a análise psicocultural empreendida por Vladimir no seu filme. Outros tipos de interação entre vida privada e atuação pública enriquecem os perfis de Arnaldo Batista e Rita Cadillac, sem que a linha do respeito e da sensibilidade sejam rompidas.
Entre a hagiografia e o retrato multifacetado, essa caravana de documentários tem suprido a relativa ausência de figuras afirmativas no cinema brasileiro de ficção das últimas décadas. Trata-se de um fenômeno praticamente sem contraponto, já que a prática de documentar personalidades ‘negativas’ representa um tabu em nossa filmografia. O exemplo mais notório nesse campo é Cidadão Boilesen (Chaim Litewski, 2009), estudo de personagem dedicado ao empresário Henning Boilesen, um dos principais financiadores da repressão nos anos de chumbo da ditadura militar. O sucesso desse filme, em termos de realização e de recepção crítica, comprova a possibilidade de um outro tipo de cinebiografia, bem distante da habitual consagração de heróis.