Depois de ter sido objeto de filmes de Chris Marker e Silvio Tendler, o herói comunista e líder guerrilheiro Carlos Marighella ganha a sua cinebiografia mais pessoal e provavelmente a mais rica em preciosidades documentais. Isa Grinspun Ferraz, sobrinha do retratado, parte de suas lembranças de menina, o que pode soar mais como alinhamento a um modelo narrativo em voga do que uma necessidade orgânica do filme. Mas felizmente esse “gancho” é usado de maneira discreta, deixando o foco principal para os depoimentos de velhos comunistas, parentes e figuras emblemáticas da resistência à ditadura militar, como o crítico e escritor Antonio Candido. Textos e poemas de Marighella surgem na voz de Lázaro Ramos. Tudo isso forma um tecido extremamente coeso, num roteiro praticamente exemplar.
A pesquisa iconográfica de Remier Lion é primorosa, com dezenas de filmes de ficção e documentários que se combinam, em perfeito ajuste dramático e atmosférico, para construir o itinerário do personagem e das esquerdas ao longo de quase 50 anos. Entre as muitas qualidades do filme, ressalta um equilíbrio cuidadoso entre o detalhe pessoal e a análise macro, a dimensão humana e o significado histórico daquele mulato revolucionário. Vale destacar também a expressividade e espontaneidade dos depoimentos, especialmente da parte de Clara Charf, ex-companheira de Marighella, cujos charme e vivacidade continuam apaixonantes.
Entre o “inimigo público n° 1” do regime militar, o “santo do socialismo” no dizer de Antonio Candido e o misterioso Tio Carlos que Isa via chegar em sua casa com uma enigmática capanga que ninguém podia tocar, Marighella desenha um perfil tão profundo quanto sóbrio. Junta-se a Hércules 56, Cidadão Boilesen e Diário de uma Busca como as melhores revisitas que o documentário tem feito a nosso passado ainda recente.
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