A Semana dos Realizadores exibe hoje (sexta) no Rio dois filmes inéditos na cidade e já premiados no último Festival de Brasília. Depois da Chuva levou melhor roteiro (Claudio Marques), ator (Pedro Maia) e trilha sonora (Mateus Dantas, Nancy Viegas, Bandas Crac! e Dever de Classe). Já Riocorrente ficou com os prêmios de melhor fotografia (Aloysio Raulino, póstumo) e montagem (Idê Lacreta e Paulo Sacramento).
Abaixo, os textos que publiquei sobre cada um na época:
DEPOIS DA CHUVA
Na televisão Tancredo Neves conclama os jovens à tarefa cívica de ajudar seus pais a cuidar do país. Num colégio de Salvador, os adolescentes se dividem entre a defesa de um socialismo libertário com tintas anarquistas e a catarse desrepressora dos baseados, do rock e dos shows transformistas. Estamos em 1984, no alvorecer da Nova República, época em que a estudantada ainda cantava Vandré, rodava seus panfletos e fanzines em mimeógrafo e criava rádios piratas para expressar sua inconformidade com a democracia meia-bomba que se instalava no país.
Depois da Chuva é uma encarnação perspicaz de um momento raramente abordado no cinema brasileiro pela perspectiva do ativismo estudantil. No centro do furacão está o menino Caio (Pedro Maia), personagem bertolucciano até a medula. Ressentindo-se da ausência do pai, morando com uma mãe com quem não tem diálogo, ele deriva entre o tédio, a doçura e uma revolta surda que o leva a ser ameaçado de expulsão da escola. À sua maneira, vai se tornar uma liderança capaz de contestar outro líder mais engajado.
Os diretores Cláudio Marques e Marília Hughes criam uma narrativa lacunar, mas que se organiza principalmente na deambulação de Caio. Os encontros dele com uma protonamorada (Sophia Corral) são particularmente encantadores, com diálogos juvenis muito plausíveis e uma química notável entre os dois ótimos atores. Em outros momentos, a direção não obtém a mesma fluidez, sobretudo quando parece optar por uma desdramatização um pouco forçada.
De alguma maneira, Depois da Chuva dialoga não só com os filmes “jovens” de Bertolucci, Assayas e Ken Loach, como também com a realidade brasileira atual, quando mais uma vez a juventude se questiona sobre o seu papel numa democracia que não atende a alguns de seus mais fortes anseios. Não se trata de comparar 1984 com a atualidade, claro, mas de identificar um impulso semelhante, que tem a ver tanto com o prazer de viver quanto com o desejo de participação social.
RIO CORRENTE
Em seu primeiro longa de ficção, Paulo Sacramento mantém-se fiel ao propósito de unir experimentação narrativa com depoimentos fortes sobre a realidade do país. Riocorrente reúne três personagens mais ou menos emblemáticos: um jornalista e guia turístico (Roberto Audio) afeito a compromissos formais e desconfiado da “ditadura do novo”; um ladrão de automóveis (Lee Taylor) de comportamento agressivo e veleidades incendiárias; uma mulher (Simone Iliescu) que é amante dos dois e divide entre eles o seu tempo e os seus desejos; e um menino negro (Vinicius dos Anjos), chamado Exu e adotado pelo ladrão, que passa o tempo vagando pelas ruas e, segundo a sinopse do filme, “é o porvir”.
Com esses elementos, o filme constrói um ensaio audiovisual sofisticado na forma, mas nem sempre nas relações metafóricas que procura estabelecer. Os ratos que devoram pilhas de um jornal paulista, por exemplo, não chegam a ser uma figura de linguagem das mais sutis. A narrativa é pontuada por anotações à margem, que revelam um certo didatismo: “é preciso separar os mestres e inventores dos diluidores e beletristas”; “as ideias precisam voltar a ser perigosas”, e por aí afora. Volta e meia aspectos documentais ou pseudodocumentais invadem a pauta ficcional, como o incêndio do Joelma, um homem caído sobre as grades de um prédio, uma minipalestra de Marcelo Grassman sobre as produções do inconsciente ou um menino-prodígio da sinuca que exibe seus dotes. Esses elementos parecem funcionar como signos de contaminação da ficção pela realidade ao redor.
À medida que evolui na tela, Riocorrente vai se confirmando como um estudo enviesado das pulsões presentes na sociedade paulista contemporânea, mas também na brasileira de maneira geral: um desejo de ordem e de prazer convivendo com uma indignação meio catártica. O impulso incendiário das “vanguardas de rua” está ferozmente representado pelo fogo que faz explodir carros, cabeças e paisagens. Esse é apenas um dos aspectos de um brutalismo deliberadamente buscado nas imagens e sons do filme. Galhos esmagados, objetos espatifados, portas arrombadas, motores em combustão, rosnar de animais, serra elétrica, trepadas ríspidas se sucedem na estonteante montagem de Idê Lacreta e na edição sonora de Ricardo Reis. A fotografia, que explora muito bem o contraste entre tons cinzas e clarões, foi a última do grande Aloysio Raulno.