Visitas à Garagem

Sobre três filmes que vi na II Mostra Cinema de Garagem

LINZ – QUANDO TODOS OS ACIDENTES ACONTECEM parte de uma inspiração ambiciosa: o romance inacabado “Lenz”, de Georg Büchner. Jakob Lenz, o personagem, é um escritor que sofre de esquizofrenia e é enviado para tratamento no campo. Lá ele tem fantasias onipotentes, comunga com a natureza, recebe uma carta perturbadora e tenta o suicídio. A versão de Alexandre Veras traz o ator Delani Lima, muso do cinema de garagem, no papel de Linz, um camioneiro que chega à região de Tatajuba, no Ceará, trazendo móveis e uma carta para uma moradora local. Como Dona Marlene recusa-se a receber as encomendas do filho distante e até mesmo a assinar o recibo, Linz vai ficando por ali, num misto de inércia e atração mágica. Deambula pelas dunas, mergulha no mar sem rumo, embrenha-se pelas árvores, interage com pessoas do lugar. Até que sai para uma estranha pescaria da qual parece não regressar. A forma meditativa e hipnótica com que Veras descreve esse ambiente e conta esse esboço de história está a meio caminho entre o narrativo e o experimental. Senti ecos de Antonioni, Jia Zhang-ke e Pedro Costa, mas acima de tudo a continuidade dessa ficção com o já clássico DOCTV “As Vilas Volantes”, que Veras realizou em 2005. Essa aldeia que não existe mais ou mudou de lugar – e leva Linz a descarregar móveis e tapete em meio às dunas, em sequência de alto surrealismo poético – é uma daquelas vilas volantes que o vento empurra daqui para lá. Delani Lima, eixo contínuo de todo o filme, é um ator excepcionalmente dotado para “ser” em vez de representar. Ele é ao mesmo tempo o homem comum e o animal mitológico que se espera de Linz. Mas nada é tão decisivo para a rara beleza do filme quanto os trabalhos de fotografia e criação de paisagens sonoras. As imagens de Ivo Lopes Araújo são sempre imprevisíveis: que magníficas composições móveis surgirão de suas panorâmicas? Que surpresas de luz se desenharão de suas cenas noturnas? Que milagres terão vez de seus longos planos sobre as dunas e o oceano? A sequência final, que se abre lentamente sobre um mar matinal, é uma das coisas mais bonitas que vi no cinema nos últimos anos.

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Voltando a um conto da juventude de Flaubert para o segundo tomo de uma trilogia iniciada com “Djalioh” e que não teve tempo de concluir, Ricardo Miranda depurou alguns recursos desse modelo de adaptação literária em PAIXÃO E VIRTUDE. Indiferenciou ainda mais personagens de narradores, fazendo com que eles se narrem uns aos outros e a si mesmos dentro da própria cena, num cruzamento de operações e identidades. Para reduzir ainda mais o risco da ilustração pura e simples, fez sutis desvinculamentos entre ação e narração. Helena Ignez repete o papel de um Flaubert flaneur, dizendo parte do texto com a verve costumeira. As opções são radicais: essencialismo, teatralização, tom empostado, pausas frequentes entre as frases, gestual quase sempre hierático. Os riscos também são grandes: monotonia, esvaziamento das oscilações dramáticas do texto, elipses um tanto arbitrárias. Em meio a tanto descarnamento cênico, porém, as sequências de sexo – e não são poucas – vêm com uma energia bem realista. Assim o filme enfatiza o elemento central do texto de Flaubert, “Paixão e Virtude – Conto Filosófico”. A sexualidade e a histeria, que dão origem a uma certa monstruosidade, são o traço comum entre as duas obras. Em “Djalioh”, tudo nasce de um experimento científico com macacos; em “Paixão e Virtude”, trata-se de um amor que ganha contornos de selvageria e desfecho de tragédia. Na esposa insatisfeita que se apaixona perdidamente por um jovem químico, percebe-se uma semente de Emma Bovary. Ricardo Miranda buscou ressaltar a carnalidade do tema através desses corpos que falam com mais ênfase do que as palavras. A imagem do pênis monstruoso, aliás, é outro ícone que conecta os dois filmes. Clarissa Ramalho, viúva e parceira de Ricardo, está agora trabalhando no roteiro do terceiro filme, “Natureza Morta”, desta vez baseado no romance “A Carne”, de Julio Ribeiro. Ainda não foi decidido quem será o diretor. As apostas estão abertas. Meu palpite é Luiz Rosemberg Filho.

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AMADOR, o penúltimo longa de Cristiano Burlan (“Mataram Meu Irmão”), é um trabalho que estampa os impasses do filme-processo. Há um filme dentro do filme. Nele, o diretor Henrique Zanoni (homônimo do ator que o interpreta e muito parecido com Burlan) foi abandonado pela namorada e está em busca de um novo filme. Ele faz testes e entrevista atrizes num estúdio, conversa com Jean-Claude Bernardet sobre a filmagem de rostos, troca ideias com um poeta, filma um pintor diante de sua modelo, ouve uma veterana encenadora, elogia Tomás Gutierrez Alea, faz solilóquios sobre os filmes como sendo desafios de luta para o espectador em lugar de objetos para consumo passivo. Pois bem. AMADOR quer ser um jogo de espelhos sobre os atos de representar, filmar e ver filmes. As instâncias se confundem, pois o diretor Henrique mistura-se com o diretor Cristiano, atrizes se rebelam contra seu comando (uma delas chega a tomar a câmera e invertê-la para filmá-lo), o crítico se recusa a responder a uma pergunta, o documental e o ficcional se interpenetram. O espectador – mais uma inversão – ficaria com esse material fragmentado para montar o seu próprio filme na cabeça. O que nunca acontece, entretanto, é Cristiano abrir minimamente alguma janela que não dê para dentro de si mesmo e de sua sensação de extravio. Um simulacro de curiosidade (“o que é o cinema?”, “o que você vê no meu rosto?”) apenas disfarça uma autossatisfação, um elogio da própria indefinição e da própria deriva. O processo se encerra nos seus limites circulares e autorreferentes, ainda que a câmera siga o voo de pássaros no plano final.

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