Quatro + Coutinho

Numa estrutura de romance de formação, O ESTUDANTE narra o duro aprendizado de Roque Espinosa desde sua chegada à Universidade de Buenos Aires, vindo da província, até se transformar em massa de manobra da política estudantil e compreender de que são feitas as vitórias e derrotas eleitorais. Se no início as diversas facções do movimento lhe parecem uma sopa de letras incompreensível, para os não argentinos continuará sendo até o fim. Aquela dinâmica é muito própria da academia argentina, onde a eleição de um novo reitor pode rivalizar em complexidade com uma disputa entre o Partido Justicialista e a União Cívica Radical. Mas o que nos guia de fato é a bússola de Roque, um indivíduo que descobre na negociação política uma pulsão tão erótica quanto a que o faz levar para a cama colega, professora e funcionária. Roque chega a abandonar os estudos para dedicar-se às maquinações eleitoreiras, nas quais o “mate” (chimarrão) funciona como metáfora de acordos, servilismo e amoralidade. O filme de Santiago Mitre é muito interessante como discurso paralelo sobre a política argentina, com seus ecos onipresentes do peronismo e sua dose inevitável de melancolia e desesperança. Beneficia-se enormemente de um trabalho coletivo excepcional dos atores, diálogos cheios de colorido humano e intensidade argumentativa, uma ambientação bem sugestiva e uma fotografia que realça o aspecto quase documental da encenação.

Coma muito, coma bem e seja feliz. Eis a mensagem de PARAÍSO, mais uma comédia romântica a usar a gastronomia como discurso paralelo. O público já está ficando obeso de tanto filme do gênero, da Bélgica ao México, dos EUA à Alemanha. “Paraíso” conta os distúrbios de um casal depois que se muda do subúrbio para uma área central da Cidade do México e ela decide perder peso. A felicidade então é associada aos doces e frituras, enquanto as dietas trazem desconfiança e depressão. Nada mais convencional que o desenrolar desse argumento, em que pese (e muito) a simpatia dos protagonistas e o talento dos atores. Tem lugar garantido entre os filmes fofos da temporada, em mais de um sentido. O preço de tanta fofura são a eventual falta de sutileza dramatúrgica em momentos-chave e um encaminhamento mais do que previsível no final. P.S.: Filme visto com boa projeção e bom som no Cine Joia.

O mundo em que se passa APENAS UMA CHANCE é dividido entre aquelas poucas pessoas sensíveis-tímidas e a grande massa de medíocres-agressivos. Entre a glamourosa Veneza, que ocupa cerca de 15 minutos de filme, e a cinzenta e industrial Port Talbot, no País de Gales, que fica com os outros 88 minutos. Entre o belcanto da ópera, que faz a trilha incidental, e as cançõezinhas pop que compõem a trilha não diegética. Não é difícil, portanto, conquistar a simpatia da plateia para o lado bom do mundo. A “história real” do garoto gordinho e “esquisito”, que se torna um rapaz nervoso e azarado para só depois de muita dor e hesitação chegar enfim ao estrelato através de um concurso de talentos na TV, é um comboio de lugares-comuns puxado pela locomotiva de um ótimo elenco. Há diálogos espirituosos e um jeitão de grosso-bretanha que sempre diverte, seja em Loach, Frears, Leigh, “Billy Elliot” ou numa diluição geral como essa. É o que quase nos faz perdoar a enxurrada de clichês de tenacidade e bons sentimentos.

O roteiro de O MENINO NO ESPELHO lida com arquétipos das histórias infanto-juvenis, tais como as crianças reunidas numa organização secreta, o menino inventivo, o amigo imaginário, o cachorrinho esperto, o namorico ingênuo e o vilão facilmente identificado. A grande sacada do livro semi-autobiográfico de Fernando Sabino é fazer com que o tal amigo imaginário seja um reflexo do próprio menino, um reflexo que se rebela contra sua condição e quer ocupar o lugar do outro. O filme coloca isso na tela mantendo não só a ambientação nos anos 1930, como também uma certa singeleza que supõe associada àquela época. O efeito, porém, é mais diluidor que sugestivo. A impressão de defasagem com o contemporâneo se agrava pelo déficit de ritmo, de carisma nos atores e de um melhor “preenchimento” da encenação. Muitas cenas acabam parecidas com aqueles desenhos animados em que só as linhas essenciais se movem enquanto o resto fica parado. Bem cuidado do ponto de vista cenográfico, fotográfico e musical, o filme no entanto carece de uma energia que o faça atravessar de fato o espelho.

Finalmente consegui ver EDUARDO COUTINHO, 7 DE OUTUBRO, a entrevista que Carlos Nader fez com o mestre das entrevistas. Num pequeno estúdio, cercado da equipe que sempre trabalhou com ele, Coutinho respondeu a perguntas e comentou cenas de filmes seus, algumas escolhidas aleatoriamente por números. A rigor, não há grandes novidades para quem assistia à participação de Coutinho em debates e conversas sobre seu trabalho. Eu, particularmente, só não conhecia sua digressão sobre o caráter erótico da entrevista cara a cara. De resto, a vivacidade do “corpo que fala”, as ênfases sublinhadas por palavrões, seus princípios metodológicos mais conhecidos, as reflexões sempre radicais sobre o trabalho do documentarista, a sombra de amargura que se erguia de suas falas sobre a vida – tudo está ali, concentrado em poucas dezenas de minutos. Mas, para a economia do filme de Nader, achei exagerada a extensão das inserções de cenas de filmes de Coutinho. Minha impressão é de que o documentário ficou devendo mais Coutinho, em lugar de tanta ilustração. Gosto mais quando Nader contradiz as falas do entrevistado com a técnica empregada nos enquadramentos e na montagem do que quando emula o estilo dele, como nas entradas e saídas de cena. Enfim, quem achava que fosse simples conversar com aquele homem diante de uma câmera? Por isso mesmo eu gostaria de rever um dia a gravação que Beth Formaggini fez da minha longa entrevista (seis horas!) com Coutinho em 2003, na sua salinha do Cecip, reproduzida no meu livro sobre ele. Que eu saiba, ela nunca editou.

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