Precisamos falar sobre SELMA. Antes de mais nada, acho que não merecia mesmo concorrer a Oscar nenhum. Não por ser um mau filme, mas apenas por não ter qualquer brilho especial. O ator que faz Luther King tem ótima presença e se sai muito bem principalmente nas cenas de oratória. Ainda assim, não chega perto de outras performances da temporada. A direção de Ava DuVernay é competente, mas no fundo rotineira. O relato das marchas pelos direitos civis dos negros no Alabama resulta um tanto burocrático e convencional – com cara de telefilme, como alguém já disse por aí. Em lugar da logística de preparação das manifestações e de sua repercussão entre os militantes, o filme se deixa dominar pelas conversas e discussões, geralmente encenadas num tom solene de “fato histórico”. Luther King soa retórico até mesmo nas conversas com a mulher, daí resultando não propriamente uma pessoa, mas um ícone que, ora, já conhecíamos. O perfil de Lyndon Johnson no episódio, debatido por historiadores, parece ressaltar o peso da mídia, pois é depois de ver um massacre pela TV que ele decide, enfim, encaminhar a lei que garantiu os votos dos negros. Quanto a Malcolm X, achei curioso vê-lo propondo a Luther King uma estratégia conjunta, este sim, um dado que eu desconhecia. Posso estar errado, mas creio que SELMA chegou à indicação para melhor filme menos por seus méritos do que em respeito à causa, à atuação da diretora na promoção do cinema afrodescendente e aos nomes de Oprah Winfrey e Brad Pitt na produção.
Bola pretíssima para SNIPER AMERICANO. O filme me pareceu hediondo. Uma mistura indigesta de erotismo bélico e patriotismo compungido. Os paralelos entre a adrenalina da guerra e os flertes românticos, culminando na cena em que Chris Kyle troca malícias com a mulher tendo uma mão no fuzil e outra no celular, dão a medida do que pretende o filme, pelo menos em sua primeira metade: divertir pitboys de direita. Revistas masculinas + jogos de guerra. A insistência da câmera em mostrar o ponto de vista da mira do sniper também apela ao voyeurismo, comum à pornografia e ao espetáculo dos combates modernos. Na verdade, o prazer que Clint Eastwood quer oferecer, por trás de uma postiça mensagem pacifista, é o de ver iraquianos morrerem como moscas, ou pelo menos sofrerem intimidações e ameaças. O episódio do menino alvejado por Chris é a única perspectiva moral adotada pelo filme. De resto, a ocupação do Iraque é uma nova versão dos velhos bangue-bangues, com os índios substituídos por árabes que precisam morrer para proteger os EUA (obrigado, Rosane Nicolau, pela lembrança). A síndrome da autoproteção nacional, elevada a doença mental, é o tema que poderia render um estudo minimamente complexo da figura do “herói” matador. Mas “American Sniper” está menos interessado em aprofundar isso do que em cortejar o melodrama familiar e morder-soprar os instintos guerreiros do país enquanto mimetiza com monotonia barulhenta as transmissões de guerra da TV.
Assisti recentemente ao média-metragem L’ESPRIT CHARLIE HEBDO, realizado no mês passado por Fabrice Gerardi. Algumas cenas foram rodadas logo no dia seguinte ao atentado que matou a maior parte dos redatores e desenhistas da publicação. Íntimo da equipe, Fabrice teve acesso privilegiado, por exemplo, à primeira visita dos parentes ao apartamento da colunista Elsa Cayat, uma das vítimas fatais, ou à sala do Libération onde os sobreviventes passaram a editar o jornal. O clima era de consternação, mas também de firmeza na intenção de não ceder às intimidações do fundamentalismo. O cartunista Luz diz que o momento não é de resistência, mas de sobrevivência. Afinal, a redação foi quase toda dizimada – e a semelhança entre as palavras “dizimar” e “desenhar”, em francês, é motivo de um chiste entristecido. O média incorpora cenas filmadas há algum tempo, mostrando o clima descontraído e algumas rotinas de trabalho de Charb, Tignous, Cabu e outros que tombaram. Apesar do atentado de 2011 e das ameaças, eles pareciam confiantes no poder da liberdade de expressão e na laicidade fundamental do estado francês. Achavam que, ao atacar os radicais, não estavam criticando religião nenhuma, mas apenas eles. Menosprezaram o caldo de discriminações, preconceitos e histeria que, justamente ali na França, levaria ao massacre de 7 de janeiro. Esse pequeno filme, sem dar bola para o circo midiático do momento, é apenas o registro próximo e quente de uma curva trágica na história da cultura. Pode ser visto sem legendas no Youtube.