A poesia da busca

Em 1991, Jorge Furtado retirou do anonimato uma simples dona de casa de Porto Alegre e afirmou a impotência do documentarista para dar conta de uma existência humana no curta Esta Não é a sua Vida. Vinte e seis anos depois, ele parece dialogar com aquele filme no novo longa, Quem é Primavera das Neves, dirigido em parceria com Ana Luiza Azevedo. Entre a negação contida no título do primeiro e a afirmação do segundo, talvez não haja grande diferença real. Em larga medida, Primavera das Neves permanece como um mistério depois que o filme dá por concluída sua investigação.

Trata-se, mais uma vez, de um filme-processo – ou um “documentário de busca”, segundo a classificação de Jean-Claude Bernardet. Há a simulação do processo de pesquisa desde que Furtado se intrigou com o nome da tradutora de uma edição de Alice no País das Maravilhas. O teor poético do nome despertou sua curiosidade e ele publicou um artigo no seu blog perguntando: “Quem é Primavera das Neves?”. O resto está no filme: a primeira coincidência deflagradora e a sucessão de descobertas sobre aquela mulher praticamente desconhecida.

Jorge e Ana Luiza não quiseram fazer um levantamento extensivo e jornalístico da vida da tradutora, poliglota e poeta não publicada. A personalidade de “Vera” vem à tona somente através das lembranças de duas amigas de infância e juventude, a bibliotecária Eulalie Ligneul e a artista plástica Anna Bella Geiger, e do ex-marido português, o escritor e militar anti-salazarista Manuel Pedroso Marques. A pesquisa dos diretores cobre lacunas e pontua a narrativa com cartas, poemas e trechos de suas traduções, criteriosamente selecionados e ditos com singela propriedade pela atriz Mariana Lima.

Pelo pouco-muito que ficamos sabendo, a vida de Primavera Ácrata Saiz das Neves (Ácrata significando “sem governo”, nome atribuído pelo pai anarquista) foi um percurso movimentado entre o Brasil e Portugal, entre os pais de esquerda e as ditaduras dos dois países, entre o cotidiano de moça da classe média carioca e os apelos da poesia e da literatura universais. Seus poemas, só agora revelados, demonstram parentesco com os de Emily Dickinson, a quem cultuava. Suas cartas a Eulalie exalam uma sensibilidade à flor da pele.

Os depoimentos de Eulalie e Anna Bella semeiam delicadezas emocionantes no caminho da amiga saudosa, de tal modo que nos envolvem numa nuvem de ternura por aquela mulher que até ontem nem sabíamos ter existido. E preservam a discrição com que Primavera sempre se conduziu, o que é outro fator de simpatia.

Para além da figura particular de “Vera”, o filme se abre como uma doce reflexão sobre a tradução, as línguas, o exílio e a nacionalidade. Nada é exposto como tese, mas embutido naturalmente no ato de evocar uma vida através das suas entrelinhas. Nisso Furtado e Ana Luiza confirmam uma inteligência – e também um humor – já bem conhecidos de seus trabalhos anteriores. Os tantos encontros afetuosos que se dão em torno de Primavera das Neves fazem desse filme uma joia irretocável.

2 comentários sobre “A poesia da busca

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