O golpe no cinema

O Processo chega às telas depois de premiações e pré-estreias ruidosas. Além dele, nove documentários já mostraram ou estão prestes a revelar outros ângulos do golpe de 2016.

(artigo escrito originalmente para a Carta Maior)

O filme-evento de Maria Augusta Ramos começa hoje o seu teste mais importante, que é a exibição ampla para um público diversificado, com visões diferentes a respeito do impeachment de Dilma Rousseff. Até agora O Processo tem sido apreciado por plateias especialmente motivadas, seja em festivais ou em pré-estreias seguidas de debate.

A maioria dessas sessões especiais tem se transformado em manifestações de repúdio ao golpe e à prisão de Lula. Em Brasília, por exemplo, o foyer do Cine Brasília fervilhava de slogans, faixas e palavras de ordem antes que o público adentrasse a sala entoando “Olê olê olê olá, Lula, Lula!”. O mesmo canto ecoou pelas dependências de um shopping center na paranaense Londrina, quando os espectadores saíram do filme em passeata. Em Recife, a plateia lotada do Cinema São Luiz só sossegou para o início da projeção quando alguém gritou “quem fizer barulho é golpista!”. Mas enquanto o filme corria na tela, os protestos voltavam a reboar, agora com xingamentos dirigidos aos protagonistas do golpe.

Pré-estreia em Brasília

Não é comum ver as pessoas chorando ao final das sessões, ou mesmo impactadas sem ter como expressar sua indignação perante o que acabaram de ver. Assim tem sido também nas exibições em terra estrangeira. “As pessoas ficam estupefatas”, conta Maria Augusta. “Muita gente achava que tudo tinha sido um processo normal. Na mídia lá fora, com algumas exceções, a narrativa do impeachment foi uma extensão da mídia brasileira”. A diretora vê, nesse reconhecimento internacional, também uma demonstração de que seu filme não lida com um tema apenas da política brasileira, mas da crise da democracia no mundo. “Estamos falando de pós-verdade, intolerância, polarização, que estão hoje na pauta mundial”.

O Processo já é o filme brasileiro mais premiado do ano no exterior. Ganhou um dos principais festivais de documentários do mundo, o suíço Visions du Réel, o Documenta Madrid e, no IndieLisboa, o prêmio de público e do júri Silvestre, dedicado a filmes de linguagem inovadora. Tudo isso depois de ficar em terceiro lugar entre os preferidos do público na seção Panorama Docs do Festival de Berlim. Foi exibido, ainda, no festival Hot Docs, de Toronto.

Essas premiações atestam que O Processo não é bom apenas por contar o lado certo da história, mas porque tem a qualidade que se espera dos grandes documentários (leia aqui minha resenha).

Os que já tiveram alguma exibição

O filme de Maria Augusta Ramos não foi o primeiro nem será o último a levar para as telas o acontecimento político mais vergonhoso da nossa história recente. O que mais cedo se apresentou ao público foi Filme Manifesto – O Golpe de Estado, da paulista Paula Fabiana, ainda em março de 2017. A intenção da diretora foi organizar uma memória dos fatos e reações da militância no período compreendido entre as manifestações de 2013 e o impeachment de Dilma, seguido dos primeiros brados de “Fora Temer”. Registros de TV do Congresso se mesclam com cenas gravadas nas ruas, em atos públicos, passeatas e ocupações. Predomina o ponto de vista do participante, a câmera se “virando” para se aprumar e conseguir um bom ângulo (leia mais sobre esse filme).

Filme Manifesto – O Golpe de Estado

O canal de televisão Arte produziu e já exibiu Brasil: O Grande Salto para Trás (Brésil: Le Grand Bond en Arrière), das diretoras Frédérique Zingaro e Mathilde Bonnassieux, que tem como âncora o ator e escritor Gregório Duvivier. Ele fez entrevistas (inclusive com Dilma), integrantes de acampamentos do MST e beneficiários de programas sociais para mostrar, com humor crítico, um país mergulhado no retrocesso. Veja o filme completo em versão alemã com legendas em português.

A Vigília Lula Livre, em Curitiba, assistiu recentemente à estreia de Tchau, Querida, documentário produzido pelos Jornalistas Livres. Apesar do inequívoco posicionamento do grupo contra o impeachment, este é um dos filmes que se dispõem a mostrar os dois lados da polarização. Dirigido pelo documentarista Gustavo Aranda e pelo jornalista Vinícius Segalla, é narrado por quem estava do lado de fora do congresso, contra ou a favor do que acontecia lá dentro. “O espectador vai tirar suas conclusões sobre todo o processo. Não buscamos identificar qual lado estava certo. O filme busca ser um registro de um momento, um instantâneo de um país que se dividia em campos antagônicos”, afirma Aranda. Veja aqui o trailer.

O Muro

A polarização é o mote também de O Muro, de Lula Buarque de Holanda, exibido no último Festival do Rio e na Mostra de São Paulo, e com estreia marcada para 7 de junho. A sinopse diz assim: “Nas manifestações em 2015 no Brasil contra e a favor da então presidente Dilma Rousseff, o diretor Lula Buarque e a roteirista Isabel de Luca procuram destacar a voz das pessoas e suas opiniões sobre a política nacional. Para eles, o diálogo é tudo, já que na falta dele são construídos muros”. Para repercutir mais amplamente o seu tema, o filme enfoca ainda o antigo Muro de Berlim e grupos e famílias segmentados pelas muralhas da Cisjordânia.

Esquerda em Transe

Exibido até agora somente no Festival de Havana, em dezembro último, Esquerda em Transe tem o DNA de seu realizador, Renato Tapajós, um veterano documentarista das lutas sindicais e dos movimento sociais (Linha de Montagem, Chão de Fábrica). Seu novo filme narra o impeachment a partir da visão do povo. A votação na Câmara, por exemplo, é contada através das expressões e gestos da multidão que se reuniu em Brasília diante da transmissão simultânea num telão.

“Embora a narrativa central seja o processo que leva ao impeachment, visto pelos movimentos populares, há uma segunda linha narrativa que discute o papel da esquerda nisso tudo, destacando principalmente seus erros. Nesta discussão sobre o papel da esquerda no processo há a presença de pessoas como a Marilena Chauí, o Guilherme Boulos, o Jessé de Sousa, o (João Pedro) Stédile e alguns meninos do Levante Popular da Juventude”, esclareceu Tapajós ao Almanaque da jornalista Maria do Rosário Caetano. E prosseguiu: “Cabe, portanto, dizer que o nosso filme tem lado, é frontalmente contra o impeachment e não está muito interessado nas manobras daqueles que vivem dizendo que ‘respeitaram a Constituição’”. Assista a um teaser do documentário.

Os totalmente inéditos

Ainda completamente inéditos estão quatro outros longas-metragens que prometem completar o mosaico audiovisual do golpe. Dois deles têm à frente diretoras de sucesso, Anna Muylaert e Petra Costa.

Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta?, Mãe Só Há Uma) dirigiu Alvorada em conjunto com Lô Politi (diretora tarimbada em publicidade e que trabalhou com o marqueteiro João Santana na campanha de Dilma) e o uruguaio-brasileiro César Charlone, fotógrafo de Cidade de Deus. Ainda em processo de montagem, Alvorada registrou o período em que Dilma esteve suspensa da presidência, entre o afastamento temporário e a saída definitiva. Naqueles cento e poucos dias, a equipe acompanhou a rotina do Palácio da Alvorada, acercou-se de Dilma e narrou sua resistência e de seus aliados na luta contra o impeachment.

Já Petra Costa (Elena, Olmo e as Gaivotas) abriu um arco mais amplo para seu documentário. Desde março de 2016 ela vem registrando os muitos desdobramentos do golpe e dos ataques à democracia brasileira. Com o título provisório de Impeachment: Dois Pesos, Duas Medidas, seu filme inclui entrevistas com políticos e advogados, registro de protestos (dos dois lados) e o enfoque de “cenários paralelos” que culminaram com a crise atual. “Meu objetivo é investigar como chegamos a esse ambiente de hoje, tão polarizado, em que o país está virando do avesso. É como se descobríssemos que nossa democracia é feita de uma estrutura muito fina, que estava sendo corroída por ratos”, disse a diretora ao jornal El País.

Petra Costa

O covil da Câmara dos Deputados – e um pouco do Senado – foi esquadrinhado pelo documentarista Douglas Duarte (Personal Che, Sete Visitas) entre fevereiro e maio de 2016 (antes, portanto, do perído coberto pelas gravações diretas de O Processo) no filme ironicamente intitulado Excelentíssimos. Afora duas entrevistas, com Carlos Marun e Sílvio Costa, tudo o mais é observação dos rituais do Congresso, incluindo o comportamento de Eduardo Cunha durante as discussões do impeachment.

Excelentíssimos

Duarte inseriu um prólogo retrospectivo desde a reeleição de Dilma, com materiais bem pouco conhecidos, mostrando que as mobilizações pelo golpe começaram apenas quatro dias após o segundo turno em 2014. “Quero deixar bem claro que o golpe partiu do PSDB. O Temer é apenas um ótimo vilão”, afirma o cineasta. Excelentíssimos está em fase final de edição pela montadora Lia Kulakauskas e deve entrar em cartaz ainda antes das próximas eleições.

O panorama se completa com o documentário gaúcho Já Vimos Esse Filme, de Boca Migotto (Filme sobre um Bom Fim, Pra Ficar na História). Através de depoimentos de pessoas da sociedade civil de Brasília e Porto Alegre, o filme quer discutir o sistema eleitoral brasileiro, a corrupção, a operação Lava-Jato, os interesses econômicos e ideológicos, o preconceito e os papéis da grande mídia, do Poder Judiciário, do Ministério Público e das redes sociais no contexto do impeachment. Produzido por um coletivo em defesa da soberania popular, Já Vimos Esse Filme pretende tecer paralelos entre a situação política atual e as de 1954 com Vargas e de 1964 com Jango. De acordo com os produtores, a motivação para a realização do documentário é “registrar para as gerações presentes e futuras as semelhanças entre os golpes políticos ocorridos no Brasil e a fragilidade da formação democrática da sociedade brasileira.” Veja o trailer.

A convergência de todos esses trabalhos representa um dos grande momentos de atuação do cinema como documentação da História brasileira no ato mesmo em que ela acontece. Para o presente, eles funcionam como esclarecimento e catarse. Para o futuro, serão documentos definidores de como essa quadra histórica será lembrada, com seus verdadeiros heróis e vilões.

 

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