A MOÇA DO CALENDÁRIO
O título A MOÇA DO CALENDÁRIO pode ser uma pista falsa. Helena Ignez nos leva a pensar que veremos um filme escapista sobre as fantasias românticas de um mecânico de automóveis com a pin up colada na parede da “oficina experimental” em que trabalha. Mas o que ela nos serve, ao fim e ao cabo, é um pequeno ensaio sobre a inconformidade com o status quo.
Para começar, ninguém é exatamente aquilo que parece à primeira vista. O mecânico Inácio (André Guerreiro Lopes) é também dançarino, filho de um latifundiário que ele recalcou na memória. A moça do calendário (Djin Sganzerla) toma corpo como militante do MST. Os amigos de cada um são operários, ativistas, intelectuais e artistas, dedicados a tertúlias críticas sobre o capitalismo, a febre do desempenho e o racismo, entre outros tópicos.
Na origem está um roteiro deixado por Rogério Sganzerla. Sua viúva adaptou-o aos dias atuais e inseriu as reflexões do teórico cultural coreano-alemão Byung-Chul Han sobre a “sociedade do cansaço”, um desdobramento da “sociedade do controle” de Gilles Deleuze. O conceito procura dar conta do modo de vida estimulado pelo capitalismo tecnológico-digital contemporâneo, que criou as condições para que as pessoas não parem de trabalhar. Produzir mais e mais, sob pena de se sentirem inúteis, falhas e deprimidas. A opressão vem de dentro, é “neuronal”. O cansaço seria a recompensa, e o ócio, o pior dos pecados.
No seu dia a dia, Inácio se rebela mansamente contra o patrão que lhe cobra pontualidade e iniciativa. Em casa, tampouco parece confortável com o casamento pequeno-burguês e anseia por uma alternativa menos rançosa. No que parece ser mais uma atividade de descompressão do que um segundo emprego, ele faz performances de dança, muitas vezes imitando Jorge Loredo (o “Zé Bonitinho”), astro do clássico marginal Sem Essa, Aranha, de Sganzerla. A certa altura, se inscreve numa estranha experimentação com exames de urina e esperma.
Inácio, enfim, é um personagem em processo, um mutante imperturbável, alheio a grandes compromissos. Daí que a moça do calendário pode não ser uma pista falsa, mas uma projeção dos desejos mais profundos do rapaz. Em torno dele giram as potências do trabalho, da luta política, da teoria, do erotismo… Como em Godard, as referências se sucedem em descontinuidade radical. Poucas são as cenas que se podem dar por concluídas de maneira “satisfatória”, leia-se convencional. Quase tudo é fragmento, performance e citação. Inácio é Loredo; Djin em seu jipe é Helena jovem com o Cadillac de O Bandido da Luz Vermelha. As telas dentro da tela se multiplicam.
Como Inácio, Helena Ignez subverte a obrigação de produzir. No caso dela, a obrigação de produzir sentidos fechados. No entanto, e por isso mesmo, o grande desafio de A MOÇA DO CALENDÁRIO é separar a liberdade narrativa do mero acúmulo de ideias e alusões. O filme se aventura numa fronteira tênue entre a invenção e o caos, a ambição intelectual e o diletantismo. Cada espectador que capture o que encontrar.