O CENSOR, peça-filme
A peça-filme O CENSOR, em cartaz numa sala do cinema Estação Net Botafogo, começa e termina na tela. Um clipe de cenas eróticas de filmes dirigidos por mulheres abre os trabalhos, antes que saibamos quem é a mulher em carne e osso que dança em frente às imagens. Ela é Shirley Fontaine, autora de um filme composto unicamente das variações sexuais de um casal. “Se há um lugar onde tem diversidade, é na pornografia”, comenta mais tarde o outro personagem central, o censor encarregado de analisar a obra.
Ele não vê como liberá-la. “Não tem diálogos, não tem história, não tem personagens”, acusa. A senhorita Fontaine, porém, está disposta a tudo para defender seu filme. Ela está convicta de que, por trás de toda a masturbação, o sexo oral e as diferentes combinações do seu casal na cama existe a história profunda de uma relação. “É preciso ver para além das imagens”, argumenta.
A princípio, O CENSOR, do escocês Anthony Neilson, parece uma peça-duelo da arte contra a censura. Mas no decorrer da complexa relação que se estabelece entre a artista e seu algoz, passando pela sedução, a investigação psicanalítica e o desnudamento mútuo, as coisas ganham camadas de densidade imprevistas. De repente, não se trata apenas de discutir fronteiras entre arte e pornografia, mas de perscrutar o sexo como uma linguagem, com a qual se pode escrever “textos” de alcance superior.
Anthony Neilson é conhecido por textos provocativos, que não se desviam da explicitude nem mesmo da escatologia. Nessa montagem dirigida por Cavi Borges e os atores Patricia Niedermeier e Alexandre Varella, os limites são desafiados com coragem, mas sem perder o senso de medida. O jogo de cena entre Patricia e Alexandre valoriza cada inflexão (de voz e de pensamento) dos personagens. Ele, contido no seu terno, camisa e gravata pretas – que inevitavelmente remetem a Sergio Moro – vive a tensão de alguém que está sendo desvendado em suas verdades mais íntimas e se descobre cada vez mais fragilizado no papel de arauto do bom senso. Ela, expansiva como uma Estátua da Liberdade em movimento, personifica a força emancipadora da arte e da verdade. Mas tampouco ficará imune a um julgamento da sua arrogância e megalomania.
A essa dupla em estado de graça, com química, tempos e reações corporais impecáveis, junta-se Emilze Junqueira (foto à direita) numa participação discreta, mas sedutora. O pequeno espaço da sala é bem utilizado mediante um trabalho simples mas expressivo de luz e o uso multifacetado de uma mesa e uma cadeira.
O CENSOR já foi encenada em teatros alternativos da Inglaterra, espaços off-off-Broadway e locais improváveis como um porão e uma festa. Mas pela primeira vez, que eu saiba, ganha um tratamento multimídia. A tela volta a se iluminar a meio caminho, com uma das cenas mais bonitas da montagem, quando a artista e o censor se sentam na plateia para assistir ao balé sexual dos caramujos no filme Microcosmos. A noção de um sexo natural, não necessariamente atrelado a uma justificativa amorosa, ganha ilustração eloquente e poética.
Ao final de um embate impressionante entre Patricia e Alexandre, outro clipe surpreende o público, expandindo a questão da censura para todas as formas de arte e chegando até bem perto dos nossos dias. As vergonhas que temos passado com o nosso Judiciário se veem espelhadas nas entrelinhas de O CENSOR.
Obrigada ao Grande Carlos Alberto Mattos pelo brilhante texto!!! Um grande privilégio poder rever, ver e redescobrir nossa peça atravessados pelo seu profundo e imenso olhar. Um presente!!! Obrigada!!!! Evoé!!!!
Eu que agradeço por espetáculo tão bonito e potente.