VARDA POR AGNÈS
Num dado momento de VARDA POR AGNÈS, um menino visita a instalação que Agnès criou a propósito da sepultura do seu gato na Fundação Cartier. Na saída, ele comenta com ela mais ou menos assim: “Os cemitérios são lugares muito tristes, mas este aqui é mais alegre, com cores divertidas”. A observação vale como uma pequena teoria sobre a obra de Agnès Varda. Ao longo de 64 anos de vida artística, ela tratou de muitas coisas alegres e coloridas, mas a alegria e as cores estavam presentes também quando abordava assuntos graves como a viuvez, o feminismo, a contestação política e a infelicidade no amor.
Esse seu último trabalho não é o único autobiográfico. Os Catadores e Eu e As Praias de Agnès eram fundamentalmente voltados para sua vida e trabalho. Na verdade, uma dimensão autorreferente era própria de grande parte de seus filmes, de vários formatos, tamanhos e épocas. O que particulariza VARDA POR AGNÈS é ser apresentado como uma masterclass formal sobre sua trajetória. Trechos de palestras em pelo menos três recintos diferentes, junto a depoimentos gravados em situações diversas e fragmentos de making ofs formam uma cadeia de considerações da diretora a respeito de suas escolhas, métodos e objetivos.
Uma inteligência mansa e uma clareza cristalina caracterizam suas digressões.
Inspiração, criação e compartilhamento – estas são as “palavras mágicas” que a orientavam, correspondendo a um antes, durante e depois da produção. Cenas de 20 filmes ilustram sua apresentação, orientada mais por associações de ideias que por cronologia (termo que ela, a certa altura, num divertido equívoco, troca por “criminologia”). Soma-se a isso uma revisão de seu trabalho em instalações e na fotografia fixa (que fotos fantásticas!). Esses campos ajudam a compreender melhor sua estética de colagem e sua inquietação com as estruturas.
O sucesso de Os Catadores e Eu deixou, para as plateias mais jovens, a impressão de uma realizadora espontaneísta, interessada em simplicidades do cotidiano. Isso é verdade, sem dúvida, mas essa passagem panorâmica por sua carreira deixa claro que Varda era uma das criadoras mais inquietas e sofisticadas do cinema moderno. Dos curtas mais despretensiosos do início da carreira aos longas mais ambiciosos, havia a busca permanente de invenção de novos dispositivos narrativos e uma piscada de olhos para a reflexividade. Varda estava sempre próxima da animação ou da experimentação, quebrando cânones e levando o humor aonde não era chamado.
Para explicar o uso de planos-sequência móveis em Os Renegados, ela se aboleta num carrinho de travelling e se diverte com os movimentos, antes de tomar chuva com Sandrine Bonnaire. Faz um pouco como em Jane B par Agnès V., o perfil cubista e lúdico da atriz Jane Birkin. Como sempre, são fluidas as fronteiras entre documentário e ficção, assim como entre o objetivo e o subjetivo, a conversa séria e o impulso lúdico.
Agnès Varda morreu a 29 de março último, aos 90 anos, pouco depois de dar por concluído esse filme-testamento, criado como série de TV em dois episódios. Sua última imagem, esvanecendo-se na bruma de uma de “suas” praias, foi o fecho perfeito para uma longa jornada cinema adentro. O frescor de seus filmes, presente aqui em meio a um certo didatismo da abordagem, nos enche de saudade quando a tela se apaga.
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