ARAGUAIA disponível no Vimeo
A Folha de S. Paulo publicou recentemente uma matéria a respeito da influência do livro Orvil sobre a ideologia bolsonarista. O alentado volume, publicado pela primeira vez em 2012, foi escrito a partir de 1986 por uma equipe do Centro de Informações do Exército e mantido em segredo por vários anos antes de ser divulgado por meio de fotocópias dos originais e publicações na internet. Conhecido também como “O Livro Negro do Terrorismo no Brasil”, pretende contar, pela ótica da extrema direita militar, a história das tentativas de tomada do poder pela esquerda no país.
A matéria da Folha cita o crítico literário João Cezar de Castro Rocha, especialista no estudo da guerra cultural bolsonarista. Para o crítico, a narrativa do “Orvil” é um dos pilares da tática política de Jair Bolsonaro de acusar e combater uma suposta conspiração da esquerda para tomar o poder, desta vez pela via da cultura, sem pegar em armas. “Hoje eles não podem eliminar o inimigo fisicamente. Por isso a guerra cultural assumiu a tarefa de destruir as instituições que fariam parte dessa quarta tentativa de tomada do poder pela esquerda —a cultura, o meio ambiente e a universidade”, afirma Rocha. Consta que Olavo de Carvalho foi presenteado por Bolsonaro com uma cópia do livro.
Logo em seguida à publicação do artigo na Folha, o cineasta e jornalista Hermes Leal, editor da Revista de Cinema, contestou nas redes sociais a ausência dos nomes dos autores (ou organizadores) do Orvil, o tenente-coronel Lício Augusto Maciel e o tenente José Conegundes do Nascimento. Essas duas figuras sinistras foram responsáveis pela morte a sangue frio de guerrilheiros no Araguaia. Sabe-se isso de suas próprias bocas na série A Guerra do Araguaia, que Hermes Leal roteirizou e dirigiu em 2017 para o canal CineBrasilTV. No ano seguinte, o material foi condensado no longa-metragem Araguaia, liberado agora pelo diretor, gratuitamente, na plataforma Vimeo.
O filme é um petardo de denúncia, autodenúncia e emoção. Narrado pelo ator Paulo Betti, descreve as ações do pequeno grupo ligado ao PCdoB que se aventurou nas matas do sul do Pará entre 1972 e 1974, na tentativa de criar um foco de guerrilha para lutar contra a ditadura militar. O objetivo, como diz o ex-guerrilheiro Pedro Albuquerque, era restaurar no Brasil a democracia, mas não a burguesa, e sim uma “democracia proletária”.
A guerrilha do Araguaia tinha um tanto de romantismo e um quê de suicida. Eles eram poucos e mal armados, dispondo de uns parcos revólveres e velhos rifles da I Guerra Mundial sem munição. Treinavam lançamento de granada com cocos de babaçu. “A geração do Araguaia estava mais preparada para morrer do que para matar”, diz José Genoíno, ex-combatente e um dos entrevistados. No outro lado, as Forças Armadas faziam a maior mobilização desde a Guerra do Paraguai e a II Guerra Mundial.
Hermes Leal fez um belo trabalho de pesquisa de personagens. Além de ouvir diversos ex-guerrilheiros, localizou camponeses e ex-soldados que contribuem com informações detalhadas e emocionantes. Os depoimentos dos ex-soldados, recrutados entre a gente simples do Araguaia para servirem de bucha de canhão, são particularmente lancinantes pelo que ficou de traumas e sequelas naqueles homens torturados e obrigados a colaborar com os militares nas tarefas mais macabras do combate à guerrilha. Esse aspecto foi coberto pelo também excelente documentário Soldados do Araguaia, de Belisario Franca. Mas aqui ele se conjuga com os outros ângulos para montar um quadro ainda mais abrangente.
O ex-guerrilheiro Danilo Carneiro ainda sucumbe à dor ao relembrar as bárbaras torturas sofridas depois de preso e a necessidade de delatar alguma coisa mínima para não morrer nas mãos de seus verdugos. Pedro Albuquerque e José Genoíno foram considerados “traidores” pelo partido por não terem resistido à tortura e terem passado informações que, na verdade, os militares já conheciam. O filme revisita a “Casa Azul”, como era chamado o centro de tortura montado pelo Exército em Marabá.
São relembradas casos de deserção as figuras quase míticas de Dina e Osvaldão, dois valiosos combatentes que morreram na luta. O corpo de Osvaldão foi içado em helicóptero do Exército como troféu de guerra e depois entregue ao camponês Josias Gonçalves para que o enterrasse. Hermes Leal entrevistou Josias, um dos vários que enriquecem o filme com suas palavras coloridas e suas lembranças doloridas. Sabe-se, porém, que muitos camponeses também agiram na contramão, entregando guerrilheiros aos militares em troca de dinheiro.
Uma cabeça de guerrilheiro morto valia boa quantia. A cabeça mesmo, separada do corpo para ser levada a Brasília como prova de missão cumprida. É onde entram os ex-oficiais Lício Maciel e José Conegundes, além do tenente-coronel Idyno Sardenberg, que dão testemunho no filme sobre seus feitos na mata do Araguaia. Conegundes conta sorrindo como metralhou diversos guerrilheiros e descarregou 48 tiros numa moça já ferida e fora de combate. Lício Maciel, matador de Dina, não fica atrás na crueldade: “Eu não fui para a Escola Militar para ser engenheiro ou poeta. Fui para matar gente”. E completa: “Mataria hoje ainda. Mataria o Genoíno porque na época fui chamado de ‘banana’ por tê-lo deixado vivo”.
ARAGUAIA usa uma narrativa clara e organizada, lançando mão de materiais de arquivo pontuais, documentos militares e contextualizações do historiador Hugo Studart. Não menciona o livro Orvil, nem mesmo quando entrevista seus autores. A nota de conclusão é um chamado à abertura dos arquivos históricos que podem ajudar a montar o quebra-cabeça do episódio do Araguaia, nunca incorporado à História oficial.
Projeto difícil nesse momento em que até a obsessão antichinesa e anticomunista se repete. A recente matéria de Maurício Meireles na Folha situa Orvil como um link entre 1964 e a atualidade. No dizer de João Cezar de Castro Rocha, “para muita gente, a direita se reorganizou no momento do impeachment. Mas o que ocorre ali é a eclosão de um movimento que se preparava há duas décadas e nós decidimos ignorar”.
Pela cartilha de Orvil, estaria acontecendo nos governos do PT uma nova tentativa de tomada do poder pela esquerda, dessa vez através do domínio das instituições culturais. Bolsonaro conseguiu surfar nas águas turvas da reação da extrema direita e decretar a sua guerra cultural. A essência do bolsonarismo é, portanto, a retomada da cultura pelo obscurantismo e pela violência miliciana acumpliciada com os militares. Conegundes e Maciel são heróis em potencial para essa gente.
Vejam Araguaia na íntegra:
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