É Tudo Verdade: TEKOHA e SEM TÍTULO #8: VAI SOBREVIVER, de Carlos Adriano
QUANDO FAZÍAMOS BULLYING, de Jay Rosenblatt
O poe-xperimentalis-ta Carlos Adriano está com dois filmes no É Tudo Verdade. Sem contar os homenageados Ana Carolina e Ugo Giorgetti, só ele e mais dois cineastas têm esse privilégio: Mark Cousins, com os dois filmes de abertura, e Jay Rosenblatt com dois curtas. Por coincidência, o trio lida com materiais de arquivo e linguagem ensaística.
Adriano apresenta dois curtas que ilustram as duas principais vertentes de sua carreira recente: a manipulação do acervo cinematográfico universal e o libelo político. Em ambos os casos, ele trabalha a imagem e o som como matérias maleáveis, submetidas a uma recomposição obsessiva.
Tekoha recorre a material indígena. Uma tomada de cerca de três minutos, feita por guarani-kaiowás de Mato Grosso do Sul (onde se passa o longa Vento na Fronteira, também presente no festival), é desmembrada por Adriano de maneira a ressaltar a violência do incêndio provocado por seguranças de fazendeiros numa casa da Reserva de Dourados. As repetições de fragmentos, interrompidos bruscamente, potencializam a sensação de terror e a agressão aos indígenas – efeito que o fluxo normal da imagem possivelmente não chegaria a provocar.
Outros registros de ataques noturnos com armas de fogo no mesmo tekoha (território) e a imagem de uma casa de reza do povo guarani-kaiowá em chamas adensam ainda mais essa breve e resoluta acusação ao atual governo federal, que estimula o desalojamento e a violência contra indígenas. O filme segue a linha mais frontalmente política do realizador, que gerou o premiado O Que Há em Ti, dois anos atrás.
A moldura de Tekoha, porém, pode-se dizer que é de esperança na sobrevivência. Na epígrafe, um texto de Ailton Krenak fala em resistência a “esse mundo utilitário”. No epílogo, poemas-cantos guarani-kaiowá anunciam “Pássaro – vamos adornar-nos novamente”.
É isso que também promete o título do outro curta, Sem Título #8: Vai Sobreviver. A chave é quase interplanetariamente distante. Como fez com Setsuko Hara no filme anterior dessa série, Adriano agora se rende ao valor iconográfico de Anna Karina, uma das atrizes que atualizaram a imagem da mulher no cinema durante a Nouvelle Vague. Em Viver a Vida, dirigida pelo marido Jean-Luc Godard, Anna é Nana, moça meio perdida entre o trabalho, o amor e a prostituição na Paris de 1962.
Afora dois supercloses que conectam Nana à Joana d’Arc de Dreyer, Adriano opera sobre duas sequências de natureza oposta. Na primeira, Nana dança num bar de sinuca, como que provocando os homens presentes. Aqui, a peça de afro-jazz do original é substituída por um hit de discotecas dos anos 1980 (não digo qual para não estragar a ótima surpresa). Basta dizer que a letra cita “My life to live”, que é o título do filme de Godard nos EUA. É uma ressignificação e tanto, seja em termos de época, seja em estilo musical. Remete a Sem Título #1: Dance of Leitfossil, em que Fred Astaire e Ginger Rogers bailavam ao som de um fado.
Na segunda cena utilizada, a derradeira de Viver a Vida, Nana é alvejada por dois tiros numa cilada em frente a um restaurante. Godard jogava com os filmes policiais estadunidenses e, depois de Acossado, concluía mais um longa com a morte do/da protagonista no asfalto. Adriano retalha a cena, fazendo Anna Karina morrer e voltar à vida dezenas de vezes, como um disco saltando em vitrola defeituosa. Ou um poema audiovisual concreto.
Uma tela inteiramente vermelha é traço comum entre Tekoha e Vai Sobreviver. Por mais longínquos que esses dois curtas estejam um do outro, trazem a mesma pulsão de morte parcial, provisória. Reativam materiais pré-existentes (arquivos vivos) para lhes intensificar o sentido ou fazê-los palpitar ainda uma vez.
Exibições de Tekoha:
de 01/04 a 10/04 – online: Itaú Cultural Play
03/04 – 16h: Instituto Moreira Salles (RJ)
03/04 – 17h30: Instituto Moreira Salles (SP)
Exibições de Sem Título #8: Vai Sobreviver:
01/04 – 14h: Instituto Moreira Salles (RJ)
01/04 – 15h30: Instituto Moreira Salles (SP)
10/04 – online: É Tudo Verdade Play a partir de 19h durante 24 horas.
Carlos Adriano participará de debate no canal Youtube do É Tudo Verdade no dia 3/4, às 16h.
Quando Fazíamos Bullying (When We Were Bullies)
Jay Rosenblatt é um raro documentarista que só se expressa em curtas-metragens. Seus filmes quase sempre tratam de histórias de formação pessoal e do próprio fazer cinematográfico. Neste curta de 2021, indicado ao Oscar na categoria, ele se reporta a um incidente submerso em sua memória da infância, quando participou de um bullying coletivo a um colega de classe. Uma série de coincidências o leva a procurar remanescentes de sua turma e a professora, 50 anos depois, para recolher as memórias daquele fato.
Como é de praxe em tantos documentários em primeira pessoa, trata-se da expiação de uma culpa. Jay sai em busca de confrontar os ex-colegas com esse sentimento que ainda lhe incomoda. A gravidade do assunto, porém, se dissolve na linguagem empregada, de uma leveza e humor quase inadequados. A animação de fotos e found footage, mais alguns curtos depoimentos em voz over, suprem a ausência de encontros pessoais, ao mesmo tempo que conferem certa comicidade à empreitada.
A certa altura coloca-se a questão: procurar ou não a vítima do bullying? É quando o diretor faz sua opção mais discutível, apresentando supostas razões para apenas enviar uma carta. Ao fim e ao cabo, o enunciado do filme fica sendo mais interessante que o seu resultado na tela.
Exibições de Quando Fazíamos Bullying:
01/04 – 14h: Instituto Moreira Salles (RJ)
01/04 – 15h30: Instituto Moreira Salles (SP)
10/04 – 19h: online – É Tudo Verdade Play – Limite de 500 visionamentos.