Cinema italiano de ontem e de hoje

Um belo lote de 33 filmes, sendo 17 novos e 16 clássicos, é oferecido ao público brasileiro, nas formas presencial e online, no Festival de Cinema Italiano que começa hoje (4/11). A promoção é da Câmara de Comércio Italiana de São Paulo em colaboração com a Embaixada da Itália. A programação presencial se dá em 49 salas de 38 cidades do país. Todos os detalhes e o acesso virtual aos filmes estão concentrados no site do evento.

O festival traz os mais recentes trabalhos de diretores como Gabriele Salvatores (Comedians), Paolo Virzi (Seca), Roberto Faenza (Hill of Vision – A Incrível História de Mario Capecchi), Francesca Archibugi (O Colibri), Mario Martone (Nostalgia), Roberto Andò (O Garoto Escondido) e Sergio Rubini (Os Irmãos De Filippo). Entre os clássicos, há Bernardo Bertolucci (O Conformista), Luchino Visconti (Violência e Paixão, O Inocente), Roberto Rossellini (Roma, Cidade Aberta), Valerio Zurlini (A Moça com a Valise), Dino Risi (Primeiro Amor), Ettore Scola (Ciúme à Italiana), Luigi Comencini (Pão, Amor e Fantasia) e Mario Monicelli (Mal Obscuro).

Um programmone, enfim, como diriam os próprios italianos. Para quem sente saudade dos astros e estrelas de outros tempos, o festival ostenta nada menos que Sophia Loren, Claudia Cardinale, Giancarlo Giannini, Ornella Muti, Silvana Mangano, Ugo Tognazzi, Gina Lollobrigida, Stefania Sandrelli, Anna Magnani, Gian Maria Volonté, Monica Vitti, Marcello Mastroianni, Vittorio Gassman e muites outres.

Eu já assisti a dois dos filmes recentes e inéditos no Brasil: O Garoto Escondido e Nostalgia. Ambos se passam em Nápoles e lidam com um dos paradigmas da dramaturgia italiana, a Máfia. Seus personagens centrais são pessoas comuns que têm seu caminho cruzado pela Camorra.

A odisseia do velho pianista

O Garoto Escondido (Il Bambino Nascosto), de Roberto Andò, trata de um encontro entre criaturas a princípio completamente opostas. Um professor de piano idoso, solitário e recluso (Silvio Orlando) acolhe em seu apartamento um menino que mora no andar de cima e está sendo ameaçado de morte pela máfia. Ao esconder o garoto, ele próprio se expõe a perigos, num formato clássico de alguém de vida pacata que, movido por afeto, entra numa aventura arriscada. Não à toa, o velho pianista recita versos de Ítaca, poema de Konstantinos Kaváfis que se refere ao destino da Odisseia de Homero.

O teor um tanto batido da história – baseada em romance do próprio diretor – ganha nuances interessantes com as simetrias que vão se estabelecendo entre os dois personagens: distanciamento da família, carência de afeto, fragilidades da saúde. O filme joga também, um pouco perversamente, com a expectativa de pedofilia, que aos poucos se dilui na relação paternal. Como curiosidade, uma das cenas mais reveladoras é sonorizada com uma gravação de Águas de Março.

Uma pena que as legendas em português tenham sido traduzidas cegamente do inglês, o que gera diversas impropriedades. Por exemplo, na cena em que alguém abre uma porta para o protagonista e diz: “por aqui”, a legenda crava “desse jeito” (this way).

Dívidas de uma amizade

Uma complexa relação de amizade entre dois homens está na base de Nostalgia, filme indicado pela Itália para concorrer ao Oscar 2023 e o único a ser exibido somente em salas no festival. Felice e Oreste eram inseparáveis na adolescência de delinquentes em Nápoles. Além da adrenalina, um componente de homoafetividade se insinua nos flashbacks que evocam esse vínculo do passado.

Quatro décadas depois de partir para uma vida bem-sucedida entre o Líbano e o Egito, Felice retorna à cidade natal para cuidar da mãe doente. Decidido a morar em Nápoles e trazer a esposa egípcia, ele quer também reencontrar Oreste, agora um mafioso miúdo mas temido, e sanar uma mágoa que nunca se curou entre os dois após um incidente criminal.

Com sua expressão patibular, Pierfrancesco Favino vive esse homem em busca de reatar com suas raízes, custe o que custar. Ele deambula pelos bairros populares de Nápoles com olhos de redescoberta. A cidade parece ter mudado apenas na superfície, mas continua refém da violência da Camorra e assombrada por motoqueiros armados. As ruas e becos são filmados em chave semidocumental, de tal maneira que quase sentimos o cheiro dos lugares. Cercado de ameaças e conselhos para que parta dali,  Felice domina o medo em troca de uma ideia de pertencimento (a nostalgia do título) que, no entanto, não me pareceu bem fundamentada dramaturgicamente.

Em todo caso, embora retarde bastante o engajamento do espectador, o diretor Mario Martone logra um bom clima de tensão psicológica à medida que os dois ex-amigos se aproximam um do outro. As cobranças do passado, pelo código da Máfia, não perdoam dívidas.

Um subtexto interessante do filme é o papel da religião. Convertido ao islamismo, Felice será ajudado por um padre católico que mantém relações humanitárias com o submundo. Os pequenos altares domésticos são encontrados não só nas casas de famílias decentes, mas também na moradia de traficantes e no bunker de um cappo mafioso como Oreste. Sabemos bem como a fé religiosa é um canal para muitas demandas da vida italiana.

Nostalgia é um filme sóbrio e discreto, que não chega a arrebatar ninguém pelo enredo, nem pelo estilo. Mas levanta indagações sobre os caminhos do afeto quando este é atropelado pelos fatos e pelo medo. A nostalgia, afinal, é um engano do qual temos prazer em ser vítimas.

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