Seu nome artístico é idêntico ao do louro e anguloso galã americano de Bullitt, Papillon e Crown, o Magnífico. Mas as semelhanças terminam aí. Steve McQueen, o diretor de Shame, é um negro e corpulento inglês que já jogou muito futebol, mas cedo trocou os gramados pelo piso lustroso dos museus de arte contemporânea. Shame, com seus parcos diálogos e muita presença corporal, herda características de alguns curtas experimentais e videoinstalações do autor. Bear (1993), por exemplo, mostrava dois homens nus (um deles o próprio McQueen) que trocavam olhares variando entre o flerte homossexual e a agressão. Em Deadpan (1997), uma casa desmoronava em torno do corpo do artista, que permanecia imóvel e indiferente.
Brandon, o personagem de Shame vivido por Michael Fassbender numa atuação que muitos (eu nem tanto) consideraram digna de um Oscar, é mais uma variante desse corpo másculo colocado em situação-limite. Fassbender é o novo Daniel Day-Lewis, com quem divide a mesma intensidade e até certa semelhança física. Ele já fizera o papel central de Hunger, o primeiro longa de McQueen. Nesse filme, a meu ver bastante superior a Shame, o ator vivia Bobby Sands, o líder da greve de fome e de higiene dos prisioneiros do IRA em 1991. Fassbender emagreceu 16 quilos durante as filmagens, chegando a um estado semicadavérico nos dias finais do militante. Hunger mostrava a resistência do corpo como derradeira arma política.
Em Shame, o corpo é a fonte de vergonha que abala o cotidiano de Brandon, um homem viciado em sexo virtual e solidão. A maneira como McQueen constrói seu personagem, sem muitas explicações psicológicas nem contextualizações, é típica de seus procedimentos narrativos. Suas melhores cenas são aquelas sem diálogo, como a paquera no metrô que abre o filme – um contato sexual que progride pelos olhares e meios sorrisos. Ele faz um cinema basicamente de sensações, usando os tons da fotografia para “dizer” o que não vem em palavras nem cenas descritivas. “O que pode agarrar uma plateia são os elementos táteis do cotidiano”, já declarou a respeito de suas escolhas. A impressão de enclausuramento e mal-estar que prevalecia em Hunger, todo ele filmado em celas e corredores de um set-presídio, dá as cartas também em Shame, embora este se passe em ruas, prédios e principalmente no metrô de Nova York. Mas é uma Nova York átona, descolorida e depressiva, muito bem expressa na maneira como Sissy (Carey Mulligan), a irmã autodestrutiva de Brandon, canta New York, New York num clube noturno. Eu nunca imaginei que esta canção celebratória pudesse adquirir ritmo e tom de canto fúnebre (veja a cena).
A trilha sonora atmosférica de Shame é um de seus pontos fortes, ao passo que Hunger não tinha um único acorde musical. De resto, o filme se organiza em tempos flutuantes, descontínuos e fragmentados, que em certas cenas de rua evocam o estilo de John Cassavetes, sobretudo em Amantes. Críticos-psicanalistas como meu colega Luiz Fernando Gallego poderão apontar vínculos entre as relações que Brandon estabelece (ou tenta estabelecer) com parceiras de todo tipo e o laço neurótico e possivelmente traumático entre ele e a irmã. Mas as pistas que McQueen deixa pelo caminho são tênues e vagas. O que lhe interessa é sobretudo usar o cinema como uma espécie de espelho deformante, mas que assim mesmo restitui uma verdade mais profunda sobre os corpos que reflete.
É muitíssimo bem filmado e a dupla de atores se mostra impecável na corporificação (vale o termo) dos personagens. Mas é um pouco relato de caso clínico: um corte transversal na vida do Brandon (vivido pelo Michael Fassbender (e vê-lo aqui depois do nazistão de “Bastardos Inglórios” e do Jung de “Um Método Perigoso” mostra o quanto o sujeito é competente). Carlinhos me nomeou para apontar algo na relação de Brandon com a irmã, por exemplo. Mas não há elementos suficientes para imaginarmos um corte longitudinal, a curva de vida de Brandon para uma hipótese de como ele chegou onde chegou. Mas cabe a especulação sobre a opção do roteiro ao confrontá-lo com uma irmã. Poderia ser com um irmão, um amigo, uma ex-namorada, um pai, um primo, etc etc). Mas acho chato especular demais sobre a vida de personagens que não são pessoas vivas no divã interagindo com as hipóteses do analista. De qualquer modo, uma coisa é óbvia: cada um deles se relaciona com o próprio corpo de um modo peculiar: nele, excesso de Eros (ou Aphrodisia), nela, o risco de Thanatos. O que pode ter havido com eles antes?… nem o roteirista sabe (ou não quis dizer). Não somos nós que vamos inventar um trauma, um abandono, um rolo qualquer que tenha disparado em cada um o modo peculiar de viver o corpo (e a alma).