(Resenha publicada originalmente durante o Festival É Tudo Verdade de 2012)
Jorge Mautner – O Filho do Holocausto é de uma grande felicidade em captar o espírito performático de Mautner e abrir veredas para melhor compreendê-lo. Mautner é um tesouro semi-escondido na cultura brasileira: poeta, músico, pintor, filósofo, performer. Quem o conhece de fato além dos iniciados? Sem didatismo nem camisa-de-força biográfica, o doc de Pedro Bial e Heitor D’Alincourt faz esse serviço com graça e competência.
É um doc-show assumido. Nos muitos números musicais em que Mautner se apresenta com uma banda afiadíssima e participações de Caetano e Gil, assim como nas conversas gravadas numa estranha sala cheia de poltronas e móbiles – onde as pessoas falam frequentemente para “ninguém” –, rola um certo clima de estúdio de televisão, algo que tende a apequenar esteticamente as cenas. No entanto, esse handicap é sobejamente suplantado por uma indisciplina interna, uma impressão de caos (ou “kaos”) organizado que preenche tudo com a inteligência e a solenidade irônica do personagem.
Mautner ora aparece lendo trechos de suas memórias, O Filho do Holocausto, ora cantando ou declamando em clima de cabaré filosófico, ora trocando ideias com gente querida. Na foto acima, ele toca com o eterno parceiro Nelson Jacobina, falecido em maio do ano passado. A conversa com a filha Amora sobre os “micos” que ela pagou na infância por causa do pai está entre os momentos antológicos desse tipo de “papo-família” em documentários. O encontro com Gil e Caetano diante das imagens de O Demiurgo, piração filmada em Londres, 1970, é outra passagem fadada ao inesquecível. De uma ponta à outra, o filme diverte e adensa o perfil de Mautner, esse extremista de centro que tomou as ideologias como um parque de diversões.
O roteiro e a montagem são excelentes. Tiram partido de frases, canções e materiais de arquivo para construir um ensaio documental. As cenas de arquivo têm um papel criativo logo no início, quando imagens da II Guerra, ao som de Lágrimas Negras, marcam o ponto inicial de todas as obsessões do “filho do Holocausto”. Ou mais adiante, quando uma apresentação de palhaços num estádio de futebol comenta ironicamente o relato de uma briga (quase fatal) por causa do Corinthians.
Mas o melhor de tudo é a liberdade que Mautner e o filme se autoconcedem para aprofundar, sempre em tom de performance, o que existe de grave, complexo e ambíguo na persona desse pensador incansável.