Uma obra-prima indiana

teseu

Entre os filmes que vi em Brasília, durante o Festival Internacional de Cinema e Transcendência, um me marcou especialmente: o indiano O Navio de Teseu, primeiro longa de Anand Gandhi. O filme parte de um mito grego, o Paradoxo de Teseu, para discutir identidade e sentido na vida contemporânea. Segundo narrativa de Plutarco, o navio com o qual Teseu retornou de Creta para Atenas depois de enfrentar o Minotauro foi conservado como memorial durante vários séculos. Para mantê-lo inteiro, as partes que se deterioravam eram substituídas, a ponto de se questionar se aquele ainda era mesmo o navio de Teseu. Uma questão de identidade, portanto.

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O roteiro original de Anand Gandhi conta três histórias sucessivas no filme, mas simultâneas no tempo, todas envolvendo casos de transplantes. Na primeira, uma jovem cega faz fotografias experimentais com o auxílio dos sons e de um aparelho identificador de cores. Ela espera um transplante de córnea. Finalmente, quando recupera a visão, pela primeira vez ela se sente perdida no caos de Mumbai. Suas fotos se tornam banais. Ela não vê mais sentido numa arte que dependia da insuficiência e parte para o silêncio e o isolamento nas montanhas do Himalaia.

O segundo conto envolve um monge hinduísta que milita contra o sofrimento de animais em laboratórios. Ele é acometido de uma grave cirrose hepática e recusa a ajuda da medicina, que combatia. Não toma remédios nem aceita um transplante de fígado. Isola-se numa região inóspita do sul da Índia para esperar a morte. O ator Neeraj Kabi tem um desempenho magistral e emagrece 17 quilos para chegar a um estado semicadavérico. As discussões do monge com um discípulo mais pragmático conduzem a história para um desfecho surpreendente, que põe em xeque os dogmas religiosos.

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Na terceira história, um jovem empresário ganancioso é submetido a um transplante de rim. Quando toma conhecimento de que seu novo rim pode ter sido roubado de um pobre homem durante uma simples operação de apendicite – fato comum na Índia, segundo o filme -, ele decide devolver o órgão ao corpo de origem. Logo descobre, porém, que o rim do favelado fora transplantado para um rico homem sueco. Ele parte para Estocolmo a fim de exigir a restituição. Na volta a Mumbai, a vida vai pregar-lhe uma peça, revelando em toda a sua extensão o poder corruptor do dinheiro.

Um epílogo emocionante vai finalmente conectar os três plots e arrematar a metáfora do mito do navio de Teseu.

Para além de enredar a plateia em considerações sobre arte, religião, dogmas, justiça e dinheiro, o filme entusiasma pela forma como é realizado. Cada história tem um tratamento próprio em termos de gênero: um ensaio ágil e visual para o caso da fotógrafa; um estilo meditativo, às vezes antonioniano, no episódio do monge; e uma comédia negra no conto do empresário, com direito até a um parceiro cômico. Tudo funciona à perfeição, da fotografia à montagem, passando pelas interpretações e a trilha sonora. O Navio de Teseu é uma comprovação soberba da qualidade do cinema indiano para além do entretenimento de Bollywood. E Anand Gandhi, sem trocadilho, está pronto para ser um dos grandes. É uma pena que filme de tal estatura não tenha qualquer chance de chegar a um público brasileiro que certamente o apreciaria.

Veja o trailer:  

 

5 comentários sobre “Uma obra-prima indiana

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