O Canal Brasil começa a exibir neste sábado, às 20h30, a minissérie JOÃO DONATO, de Tetê Moraes e Lysias Enio. Respectivamente esposa e irmão do músico, Tetê e Enio fizeram um trabalho afetivo que toca a qualquer um de nós. Sem explorar o aspecto do documentário familiar, eles souberam captar o melhor de João Donato: sua música, seu humor e sua descontração absolutamente antiestelar. Cada um dos quatro episódios semanais enfoca um período de sua carreira, ilustrada por performances musicais em diversas partes do mundo e encontros com parceiros como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Marcos Valle, Martinho da Villa, Paulo Moura e Mauricio Einhorn. Para muita gente será a revelação da autoria de tantas melodias que amamos mas não sabíamos quem as compôs – ou julgávamos de outros. A discrição de João Donato contrasta com a exuberância de sua obra, talhada no trânsito entre o jazz latino, o samba, a Bossa Nova e os clássicos impressionistas. Sendo que tudo começou lá atrás, com o assovio de um barqueiro no Acre chegando aos ouvidos do menino João. Serão 26 minutos de simpatia e musicalidade a cada semana.
Como sugerem as conotações do título, A LIÇÃO é um conto moral. Novo cartão de visitas do cinema búlgaro, trata de decência humana e conjuntura política. Uma professora decide pressionar sua turma até que se revele o responsável por um pequeno furto da mochila de uma aluna. As circunstâncias de sua vida pessoal, no entanto, a levam a confrontar a frieza das relações humanas e burocráticas na Bulgária contemporânea, assim como a sua própria noção de ética, para não perder a casa empenhada por conta de uma dívida do marido. Os diretores-roteiristas Kristina Grozeva e Petar Valchanov reverenciaram Dostoievsky, os irmãos Dardenne e toda uma linhagem de realismo pós-socialista (cinema romeno, por exemplo) na criação desse argumento denso e cheio de expectativas habilidosamente dribladas. As duas linhas (o roubo na classe e a luta da professora por dinheiro, às vezes até por trocados) correm paralelas e se complementam na dura lição que vai atingir principalmente a mestra e a rígida moral que a leva a tomar atitudes às vezes desastradas. Para além do suspense e da trama individual, fica mais um estudo penetrante da vida num empobrecido país ex-comunista, hoje entregue à ganância dos agiotas, à impiedade do sistema financeiro e ao império do salve-se-quem-puder.
PERMANÊNCIA é um bom filme. Mais que trama, tem uma situação descrita com sutileza, gramática correta, diálogos quase sempre precisos, atores que parecem ter compreendido seus personagens em profundidade. Mas acontece uma coisa engraçada. Por trás desse bom comportamento cênico começa a transparecer um certo “academicismo pernambucano”, calcado principalmente na encenação low profile. Irandhir Santos, no papel do fotógrafo de Recife que vai abrir sua primeira exposição numa galeria paulista, atua de maneira tão retraída que chega a turvar as nuances do personagem. Algo semelhante ocorre com Rita Carelli no papel da ex-namorada que, mesmo casada com outro, o hospeda em sua casa. Tanta discrição pretende exprimir as travas que bloqueiam o afeto ainda remanescente entre os dois. O problema é que, a meu ver, isso acaba se tornando um fator mais de imobilização que de ativação da dramaturgia. A insistência em mostrar máquinas e aparelhos em funcionamento parece forçar um contraste metafórico com o torpor afetivo dos protagonistas, máquinas humanas em estado de paralisia. O uso modesto da fotografia no roteiro também sugere uma opção deliberada por descarnar o argumento até quase o osso. Um pouco mais de risco e apetite não faria mal a PERMANÊNCIA.
RETORNO A ÍTACA utiliza uma estrutura narrativa muito comum: velhos amigos que se reúnem em função de alguma coisa e fazem um balanço de suas vidas em meio a ressentimentos e acusações recíprocas. Nesse caso, o cenário é um terraço de frente para o Malecón, em Havana, e o assunto são os sonhos esmagados pelo regime cubano em um escritor, um pintor, uma médica, um operário e um funcionário oportunista. A volta de um deles, exilado há 16 anos na Espanha, e especialmente a sua decisão de ficar em Cuba são os pivôs do acerto de contas que se estabelece naquela longa noite habanera. Embora o filme tenha sido censurado em Cuba, não se trata de um libelo anti-castrista, como pode soar pela sinopse. É antes uma penosa reflexão sobre o fim da crença na possibilidade de um mundo novo socialista, que tampouco agora, com a recente abertura, teria muitas esperanças a oferecer. Uma noitada de desencanto, enfim, enquanto a cidade ao redor prossegue em sua rotina.
O diretor francês Laurent Cantet, de bons dramas sociais encravados na realidade europeia, já havia assinado um dos episódios do longa “7 Dias em Havana” (2012) e associou-se com o escritor cubano Leonardo Padura (colunista da Folha de SP) nessa livre adaptação de um de seus romances. A realização é simples e eficaz, a par da qualidade das atuações e da economia de recursos. No entanto, um ar de déja vu – tanto cinematográfico quanto temático – reduz bastante o interesse do filme. Carreiras e amores interrompidos por perseguição ideológica, jovens dispostos a sair de Cuba, dilemas entre acreditar no futuro, ceder ao medo e adotar o cinismo… A rigor, não há nada de novo nessas “memórias da revolução”, a não ser a atitude de inserir a questão cubana no cinema internacional.
Como parque temático, a Disney já fez coisas bem mais aprazíveis. Como filme, dificilmente fez algo tão cafona quanto TOMORROWLAND. Bastam 15 minutos para qualquer espectador já se sentir no meio de uma fantasia de ficção científica que parece ter saído do caderno de um estudante atrapalhado. Dois adolescentes, classificados como “especiais” e “sonhadores”, encarnam a esperança de “fazer do mundo um lugar melhor”, evitando que catástrofes naturais e sociais destruam o futuro do universo. Um deles vai ser George Clooney depois de bons muitos anos e flanar pelo ridículo com sua mochila voadora como se fosse uma cafeteira Nespresso. Para mim foi dificílimo engolir aquele monte de reviravoltas tontas, frases bem intencionadas ditas em tom de “Perdidos no Espaço” e hipóteses pseudocientíficas que sempre desembocam em uma sequência de porradaria com a participação de robôs desengonçados. A ideia motora do argumento é que a humanidade acomodou-se ao pensamento apocalíptico e alimenta as distopias em vez de botar a mão na massa para salvar as utopias. Vá explicar isso para as crianças em meio a andróides de variadas programações, mudanças bruscas de dimensão e até um foguete escondido na Torre Eiffel desde sua fundação. TOMORROWLAND rebaixa a fantasia à condição de disparate e, em seus intermináveis 130 minutos, aborrece como um sermão na hora do almoço.
Se Indiana Jones perdesse três filhos na Primeira Guerra Mundial e decidisse ir à Turquia procurar seus corpos, esse filme seria PROMESSAS DE GUERRA (The Water Diviner). Em sua estreia por trás das câmeras e também sem sair da frente delas, Russell Crowe vive um fazendeiro australiano que se mostra capaz de quase tudo no checking list da aventura: é forte, sagaz, infiltra-se facilmente em qualquer corporação, tem percepção quase extrassensorial, apelo romântico e uma determinação contagiante. Além do toque de ignorância necessária para soar simpático quando, ao ouvir o chamado às orações no ar de Istambul, pergunta “o que eles estão vendendo?”. O filme combina o velho olhar imperialista sobre exotismos do Oriente com uma correção política contemporânea que promove a compreensão entre potenciais inimigos. Pitadas de ação de guerra, uma história de amor adocicada, toneladas de culpa a serem aliviadas – eis a receita bestseller de um filme mais velho que a Arca de Crowe, ops, de Noé.
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