Márcio Câmara: sobre a escuta

Um dos mais requisitados técnicos de som direto do país, responsável pela captação sonora de filmes como Lavoura Arcaica, Mutum, A Ostra e o Vento, Cinema, Aspirinas e Urubus, Amélia e Peões, Marcio Câmara não se contenta em pilotar microfones e gravadores. Já dirigiu vários curtas – entre eles o premiadíssimo Rua da Escadinha, 162, estrelado por seu tio, o pesquisador de música Christiano Câmarae no ano passado fez uma estreia dupla: apresentou seu primeiro longa e lançou seu primeiro livro.

Som Direto no Cinema Brasileiro: fragmentos de uma história abre uma picada inédita na literatura brasileira sobre cinema. Fruto de uma dissertação de mestrado na UFF, o livro pretende combater uma “invisibilidade”. Ou, como afirma Márcio, “a insistência em fazer parecer que o som direto não tem importância dentro do processo criativo, seja no campo teórico, como na prática audiovisual”.

Ele dá exemplos dessa “invisibilidade”. Um deles é a pouca atenção que roteiristas e diretores costumam dar aos aspectos sonoros na etapa de criação e planejamento do filme, deixando que isso fique restrito ao gueto dos técnicos e dos editores de som. Outro exemplo: alijados do processo criativo, tratados quase como intrusos, os técnicos de som direto tendem a ser menos bem remunerados que fotógrafos e diretores de arte, que são ligados ao campo hegemônico das imagens. Por fim, nem o público nem a crítica partilham uma noção mais apurada do que seja o trabalho de som em um filme.

No livro, Márcio ocupa-se em detalhar a atividade dos técnicos de som direto, chamando atenção para sua participação criativa na construção de ambientes sonoros, muito além dos meros “apertadores de botão” como tantos os veem. A pesquisa sonora para um filme abrange tudo o que se passa no set de filmagem e não se restringe a ele. Uma das passagens mais curiosas do livro é quando se fala dos poetas como excelente fonte de referência para os sons dos filmes de época.

A partir da carreira e de depoimentos de mestres do ofício como Walter Goulart, Juarez Dagoberto, Zezé D’Alice, Cristiano Maciel, Mark van der Willigen, Paulo Ricardo Nunes e João Godoy, acrescidos de considerações sobre o seu próprio trabalho, o autor oferece um esboço de história do som direto no Brasil. Passa pela difícil introdução da técnica nos anos 1960, o império da dublagem através dos anos 70, a ação dos pioneiros em tempos difíceis, o atraso brasileiro na experimentação do som e a defasagem tecnológica só superados nos anos 2000, e as profundas mudanças de anos recentes.

Independente das técnicas e tecnologias empregadas, nos tempos do analógico ou do digital, Márcio chama atenção para o que considera essencial: o hábito da escuta. Sem essa função fundamentalmente humana e artística, equivalente à visão no trabalho com a imagem, não há microfones sem fio nem gravadores multipistas que forneçam aos editores os materiais para uma banda sonora sugestiva.

“Do Outro Lado do Atlântico”

O longa de estreia de Márcio Câmara, assinado em conjunto com sua mulher, Daniele Ellery (o casal na foto à direita), é um típico filme de escuta. Escuta de falas, sotaques, cantos, ambientes. Do Outro Lado do Atlântico é um desdobramento do curta Identidades em Trânsito, realizado por Márcio e Daniele em 2007. Pelo menos dois personagens reaparecem no longa. O elenco é formado por jovens da África lusófona que vieram cursar universidade no Brasil. Alguns ficaram por aqui, outros voltaram para seus países de origem: Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, Timor Leste, São Tomé e Príncipe.

Enquanto o curta focava mais aspectos pitorescos da chegada e estada dos estudantes no Brasil, o longa aprofunda-se numa série de questões ligadas a identidade cultural, práticas do idioma, convivência, racismo, consciência negra e a situação atual da África de língua portuguesa. As gravações foram feitas no Brasil e em Cabo Verde. Na pequena cidade cearense de Redenção fica o campus da Unilab – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, criação do governo Lula que ainda vai resistindo ao desmonte temerista. Há um valor simbólico aí, pois Redenção reivindica o título de cidade pioneira na abolição da escravatura, em 1883. O acolhimento dos universitários africanos seria parte de um acerto de contas pela escravidão.

Mas as coisas, como se vê no filme, não são simples assim. Nem os africanos são recebidos com naturalidade num estado que se julga pouco afetado pela negritude, nem a experiência do Brasil corresponde plenamente à imagem que as televisões divulgam nos países da CPLP. Os personagens escolhidos cobrem um amplo espectro de situações – da modelo e engenheira civil cabo-verdiana há muito instalada em Fortaleza à timorense de 52 anos que deixou marido, cinco filhos e quatro netos para estudar em Redenção. Do negro são-tomense que se casou com uma branca no Ceará ao cabo-verdiano “pouco preto” que se casou com uma negra brasileira.

Em Cabo Verde, Marcio e Daniele refizeram o contato com uma jornalista que estudou na UFF e retornou para divulgar a cultura em seu país, bem como com uma maestrina que se formou no Ceará e hoje dirige a Orquestra Nacional de Cabo Verde.

Com tantas vivências fora do comum, acentos diferenciados e depoimentos cheios de inteligência e boa expressão, Do Outro Lado do Atlântico forma um painel de reflexões cruciais para se pensar o Brasil diante da África e a África diante do Brasil. Começando por essa coisa simples e prodigiosa que é escutar um ao outro.   

2 comentários sobre “Márcio Câmara: sobre a escuta

  1. Caro Carlinhos, muito obrigado pelo seu tempo de ler o livro e assistir o filme. Só corrigindo que o Christiano era, morreu ano passado, meu tio. Vou voltar esse ano na casa, 15 anos depois, para fazer outro documentário com a minha tia que, apesar de estar com Alzheimer, está viva e morando na casa. Nesse novo filme quero falar sobre lembranças e esquecimento, fazendo a correlação entre a doença dela e o que vai acontecer com o acervo que o Christiano montou durante anos. Obrigado, abs

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