A maior atração cinéfila do Anima Mundi 2019 é o longa-metragem espanhol BUÑUEL EN EL LABERINTO DE LAS TORTUGAS, de Salvador Simó, que passa na edição paulista do festival nesta quinta às 22h e no sábado às 20h, sempre no Petra Belas Artes.
Com estética relativamente tradicional mas uma narrativa inventiva, o filme conta como teriam sido as filmagens do clássico documentário Terra Sem Pão/Las Hurdes, que Luis Buñuel rodou numa paupérrima área da Estremadura, leste da Espanha, em 1933. O projeto era uma guinada considerável para quem vinha das obras-primas surrealistas Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro. De súbito, Buñuel caía na realidade de uma comunidade miserável, isolada em montanhas áridas e costumes bárbaros.
O escândalo causado por A Idade do Ouro fechou-lhe as portas para novos financiamentos. Por sorte, Ramón Acín Aquilué, um escultor anarquista que seria mais tarde executado por Franco, ganhou um prêmio na loteria e cumpriu a promessa de custear a produção do novo filme do amigo. A pequena equipe seguia, então, para o vilarejo distante, cuja topografia lembrava milhares de cascos de tartarugas (daí o título da animação).
O filme se desenrola como um making of animado do curta de Buñuel, intercalado a cenas do próprio documentário como demonstração do resultado. É engenhosa a forma como Salvador Simó articula os dois planos, sem perder de vista as contradições que se tornaram célebres a respeito de Terra sem Pão.
O retrato que emerge de Buñuel não é o mais elogioso. Sensibilizado por um livro, ele quer ajudar a gente pobre de Las Hurdes, mas não esconde que pretende usar a oportunidade para também ajudar a si próprio. Ficam escancaradas as famosas alegações de que o cineasta provocou a queda de uma cabra de um desfiladeiro para simular um dos acidentes que costumavam ocorrer por ali. Em outra cena, ele é visto expondo um burrico às picadas de um enxame de abelhas e em seguida sacrificando o animal com um tiro de revólver, tudo para obter a cena que desejava. “É uma recriação da realidade”, dizia, acreditando que o dinheiro podia comprar tudo.
As relações da equipe com o povo do lugarejo passam pela curiosidade, a compaixão, mas também pelo humor e roçam o deboche e a exploração. O assunto é tratado de maneira bem matizada, sem margem para estereótipos. Afinal, estava-se nos anos 1930, quando a consciência social dos artistas era mais bruta do que hoje.
Uma série de traços da personalidade de Buñuel são delineados em paralelo. Por exemplo, sua relação com o pai opressor, mas que lhe ensinou a encarar a morte. Ou os tambores da procissão de Calanda, que tão forte impressão lhe deixaram na infância, como descrito em sua autobiografia.
Em 1933, Buñuel era uma das figuras centrais do surrealismo na Europa, mas mantinha com Salvador Dalí uma relação de colaboração e disputa. O filme explora com humor esse laço, além de incorporar o onirismo surrealista nas visões e sonhos de Buñuel com a imagem do pai, da mãe, de Nossa Senhora e do seu notório pavor de galos.
Por fim, a proximidade de A Idade do Ouro e Terra sem Pão nos faz pensar que esse primeiro documentário do diretor contém traços remanescentes do surrealismo, sobretudo na escolha de certos tipos humanos exóticos, nas insistentes referências à morte e nas ironias de uma narração empostada que conflita com a penúria das imagens.
Aqui o trailer da animação:
Abaixo a íntegra de Terra sem Pão com imagem razoável, narração em espanhol e legendas em inglês:
Aqui Terra sem Pão com imagem mais precária, narração em francês e legendas em português:
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